sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Nove desabafos

Desabafo I: o dragão por trás das mulheres pós-modernas

Tantas carinhas bonitas aqui, peles de veludo, lábios carnudos e provocantes, cabelos longos e brilhantes como raios do sol ou a face da noite. Rostinhos bonitos que escondem verdadeiras bestas de miolos atrofiados, um debiloidismo crônico,a indiferença irritante e, como se não bastasse, uma crueldade que não parece ter limites com todos os que tem alguma moral ou princípio político a defender. Tudo isso se junto à extrema vulgaridade e o vago estilo estereotipado de "patricinhas alienadas'' que as usuárias do facebook fazem questão de expressar, como se fossem princesas em mantos de arminho e coroas de ouro.

Contudo, sua posição nobiliárquica é ainda "maior'', na verdade: são as rainhas do lixo moral produzido em escala industrial pela internet, sentadas no trono das iniquidades e do consumismo, bem como as arautas da adoração por cantores de baixo calão, atletas de quinta categoria, personagens metafísicos de filmes e séries de gosto duvidoso. Não basta pensarem, em suas mentes doentias, que são rainhas-sol a serem adoradas pelos seus admiradores com curtidas e comentários bajulatórios em suas frequentes fotos postadas, ostentam a perversão (patológica) do sadomosiquismo, declinando dos afagos sinceros dos últimos bons cavalheiros para mergulhar de cabeça nos braços de bárbaros ainda mais crueis que elas.

Insistem elas em manter uma capa artificil, uma "coisa'' maquiada e bem-vestida, decorada aqui e ali com frases de Caio Fernando Abreu ou Lispector (quando não apenas usam o nome dos pobres autores em plágios...; talvez para disfarçar sua debilidade intelectual?), que apresentam como sendo elas mesmas, talvez visando esconder o quanto na verdade são vazias, tristes, toscas e, as vezes, monstruosas, quando deixam seus instintos mais animais à solta. As mulheres do facebook estão doentes. Cuidado às que ainda são sãs: é contagioso.
Desabafo II: o paradoxo das privatizações petistas
O Brasil é o único país que realiza privatizações estatizantes e, ao mesmo tempo, estatizações privatizantes. Na primeira, o Estado livra-se de seus bens e entrega-os de bandeja ao setor privado, mas injetando recursos públicos neles e interferindo (ou regulando, ao máximo) em sua gestão pelos novos donos, como na Vale e no recente pacote de privatizações lançado por Dilma. O governo garante tudo e maximiza o lucro do agente privado; a privatização serve ao Mercado, o verdadeiro Soberano, que acorrenta o Leviatã e o reduz a mero serviçal. Na segunda, o Estado aumenta sua atuação em outras áreas da economia e serviços públicos (leia-se, aumenta seus gastos...), mas governa segundo os interesses privados ou de partidos, ou dos seus financiadores, grandes empresas e bancos (promovendo obras públicas inúteis, que apenas justificam os elevados gastos, que acabam nas contas das Cayman, por exemplo). Aqui, o Leviatã se torna mais uma vez um gatinho manhoso e se subordina a seus donos, os donos do poder...

Desabafo III: o império da tolice no facebook

As vezes acompanho eventos interessantes por aqui. Me parece que o nível intelectual dos posts é inversamente proporcional ao seu número de curtidas e comentários: quanto mais desses últimos, menos importância ou relevância social possui o conteúdo. O número de tolices, loucuras, idiotices e afins, bem como correntes de compartilhamento, levadas a cabo por pessoas com uma tendência inegável ao debiloidismo, faz um inegável e espantoso sucesso. Duas conclusões pode-se aferir desse processo: os usuários desta rede não possuem o que fazer em seus horários vagos (o ócio é o canteiro do demônio?) e há uma terrível (e triste) preferência pelo mau-gosto, ou seja, tudo o que é baixo, promíscuo, amoral e levemente tendente ao sadismo pervertido ou ao humor de pequeno calibre. É uma combinação explosiva, que muito explica a baixa qualidade cultural da sociedade brasileira, seu apolitismo declarado ou politização alienada localista (vide as últimas eleições), e o abissal grau de decadência da atual geração.

Desabafo IV: o declínio da luta

A verdade liberta, mas também constrange muita gente, e também tem o dom de fazer inimigos para seus amantes e defensores. Particularmente, prefiro abrir mão da verdade em nome da boa convivência. Que os ricos oprimam, os pobres sejam esmagados, que Maluf mande alguns milhões para as Cayman, a Rede Globo engane/aliene/faça lavagem cerebral no populacho e o país que se dane na recessão e seja rifado pelas oligarquias. Cansei. Gritar para o mundo a verdade e receber o ensurdecedor silêncio da complascência com o status quo em resposta dobra a mais firme das vontades. Se o povão quer sexo, morte e corrupção, que tenha, e tenha em abundância. Eu declino e me eximo da minha responsabilidade; renuncio à nobre missão dos profetas que devem denunciar as contradições da sociedade e enfrentarei o julgamento Divino por engrossar as fileiras dos omissos e egocêntricos. A verdade que proclame a si mesma.

Desafabo V: o final de "Avenida Brasil''

Quando o desfecho de uma novela se torna mais importante que a situação de 16 milhões de pessoas que passam fome ou de 33% da população que mal sabe escrever e ler como deveria, temos a opção resoluta, determinada e inabalável de um povo inteiro pela miséria e alienação intelectual e social. Milhões pedem justiça contra aquela loira esquisita, da qual esqueci oportunamente o nome, que figura na novela como vilã, mas fecham os olhos as sujeiras da prática política brasileira; os mesmos milhões se emocionam e até mesmo choram com os abstratos personagens de um folhetim metafísico e irrealista, enquanto fecham seus corações, que mais parecem pedra bruta e gélida, àqueles que passam fome e vivem sem um teto sob suas cabeças. A conclusão é de que o povo brasileiro gasta toda sua parcela de humanidade com histórias fantasiosas, talvez para suportar o insuportável, que é a atual realidade social. São narcóticos as nossas novelas, o brilho difuso de um espetáculo construído sob medida para dirigir todas as atenções intelectuais da população para tolices irreais, tal como na época no velho panis et circenses romano. Já é hora da nação brasileira tomar a pena que escreve a história nas próprias mãos e acabar de uma vez por todas com essa piada-novela que é sua própria situação, títere nas mãos de um elite incompetente, reacionária e medrosa.

Desafabo VI: os professores carrascos

Quando o magistério é exercido por pessoas que deveriam ser jogadas em um hospício, as coisas não podem correr bem... salas de aula se tornam obscuros campos de concentração, onde a tirania e arbitrariedade se dilatam ao máximo. A megalomania desses tiranetes que se arrogam ao título de educadores constrange os alunos onde deveria existir conforto moral, espalha o medo onde deveria existir a compreensão, funda a bajulação no lugar da competição e do cooperacionismo saudável, exclui e segrega no lugar (a escola, faculdade etc) que deveria congregar e tolerar. Dizendo-se infalíveis, divinos, iluminados, portadores de uma luz opaca (só vistas pro eles mesmos) rançosa e sem vida, maculados pela síndrome do pequeno poder (cito um grande amigo, que, como eu, passa pela mesma situação), tais indivíduos, miseráveis, pequenos e medíocres por trás de sua pompa pseudo-intelectual, só conseguem ensejar, além de ódio, um sentimento de infinita piedade naqueles que sofrem com suas medidas autoritárias. Teremos que exercer a máxima cristã de oferecer a outra face, mas sabendo que a vitória será nossa, porque nossa causa é justa, e a causa justa é a do próprio Deus, o Supremo Juiz; Ele saberá medir as culpas e, em Sua infinita misericórdia, perdoar esses ditadores da sala de aula. Sentimo-nos tristes, porque sabemos que venceremos esta etapa e evoluiremos como seres humanos, rumo à comunhão total com o Pai, enquanto esses ignóbeis ingênuos, prepotentemente auto-investidos de uma "sabedoria'' professoral só por eles entendida, chafurdarão na lama e, não conseguindo dela sair, não poderão subir rumo ao céu estrelado.


Desabafo VII: o amor em uma frase
Amor = sexo maquiado com sentimentalismo e umas pitadas de metafísica. Eis a fórmula do amor.
 
Desabafo VIII: as paixões artificiais

Minhas paixões são como as flutuações da Bolsa de Valores: ora em alta, ora em baixa, raramente em depressão e raríssimas vezes em euforia, e eu sou como o investidor ansioso de colher doces lucros. Mas essas ações paixonísticas perdem rendimento tão rápido quanto as empresas "X'' do Eike Batista. E, na maioria das vezes, possuem um valor meramente especulativo, artificial, oco, vazio... como um papel da OGX, que eu digo possuir, mas o que eu tenho de fato são especulações vazias, abstrações, promessas, ah, meras promessas... tenho de parar de "investir'' nas "ações'' e nas companhias erradas. Vou procurar um fundo de renda fixa... e parar de investir em ações de alto risco. Já perdi muito das minhas riquezas assim.
Desabafo IX: as peripécias do Ministério Público Federal

Fiquei altamente impaciente com o número de pessoas compartilhando a notícia "MPF pede que a frase 'Deus seja louvado' seja retiradas das cédulas do Real'' como se fosse um acontecimento vital para o país. Mais uma vez partem de um raciocínio aberrante e tosco, no qual o Estado laico necessariamente deve separar-se de qualquer crença em uma Entidade Transcendental chamada "Deus'' e proclamar-se ateu! 

Esquecem-se de que a Constituição foi promulgada sobre a proteção de Deus, admitindo Sua existência e utilizando a palavra para designar os todas as religiões presentes no país (aliás, os crucifixos nos tribunais invocam justamente esse "Deus'' presente no preâmbulo da Constituição, já que é na jurisdição que a ordem constitucional se revela por excelência; ao julgar, o juiz aplica a Constituição, cuja ordem foi fundada sobre a proteção de Deus, refletindo as legítimas crenças plurais do brasileiro comum no Divino); não há qualquer promoção de uma religião, tal como não há nos nomes de cidades, Estados e feriados, que se tornaram elementos culturais, não religiosos, para o mundo temporal. Aliás, quantas pessoas deixarão de passar fome no país, com essa nobre ação do MPF? Que direitos fundamentais irá realizar? E quais os direitos que estão em risco com uma frase filosófica - e não puramente religiosa- simples nas notas monetárias? É justamente essa posição dúbia do MPF, que se limita a debruçar-se sobre questões irrelevantes ao extremo, que impede que questões tremendamente mais importantes sejam postas na pauta do Judiciário pelo legítimo advogado da sociedade, o parquet. 

Essa onda anti-religiosa, um modismo passageiro por certo, ataca frontalmente as fundações culturais do país e, infundadamente, promove os interesses pífios de minorias que querem tiranizar, ideologicamente, a esmagadora maioria dos cidadãos desse país. Mesmo países não laicos, como a Inglaterra (cuja Igreja oficial é a Anglicana), Dinamarca (Igreja luterana dinamarquesa), Bélgica (Catolicismo) e Mônaco (catolicismo) não tem qualquer problema em relação à presença de símbolos religiosos nos aparatos estatais... mas no Brasil, terra de pensamento tipicamente subdesenvolvido que absorve com avidez todas as influências externas (e o neo-ateísmo é uma delas), coisas insignificantes como essas são transformadas em questões de vida ou morte. Ah, tenha santa paciência!
 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Crônica de um reinado: reflexões sobre a França dos Valois e o Brasil contemporâneo




















































Apesar de hoje, em tempos de globalização, a influência cultural clássica da França esteja em franco declínio, sua maravilhosa história elucida, em muitos pontos, a tragetória do Estado nacional moderno, da civilização ocidental e, nessa última incluído, do próprio Brasil. Comumente, as nascentes monarquias medievais marginais, como Portugal, tomavam como exemplo o mais poderoso e avançado dos reinos cristãos, a França dos Capetos e, posteriormente, dos Valois. A própria Dinastia real portuguesa, por volta da época em que se passa o fragmento literário sobre o qual nos basearemos, era de origem francesa (a família Borgonha), bem como as principais casas nobres da Europa. 

Assim, muitos costumes e práticas culturais francesas acabaram, no bojo do Estado monárquico português, atravessando o oceano e se fixando no Brasil, quando da colonização das américas. Assim, apesar da frança ter legado, diretamente, muito pouco ao Brasil, sua herança indireta ajudou a fundar o próprio Estado nacional, o subsistema de classes, o poder das oligarquias rurais (que nada mais eram - ou são- do que uma nobreza semi-feudal, a quem faltam apenas - não no Império, diga-se- apenas os títulos nobiliárquicos), a burocracia pública e a prática cotidiana dos políticos brasileiros de forjar alianças com base em ritos e práticas ilegais e imorais - aqui me refito explicitamente ao presidencialismo de coalizão, os financiamentos irregulares de campanha, a apropriação da Coisa Pública em nome de interesses escusos.  (Ao lado, Carlos de Valois, fundador do ramo dinástico dos Valois).

Segue uma excelente passagem do penúltimo livro de uma das maiores séries literárias da França- Os Reis Malditos -, A Lis e o Leão, que retrata a ascensão do Conde Filipe ao trono francês, fazendo-se coroar como Filipe VI de Valois, depois da morte de Carlos IV, último rebento masculino direto da dinastia de Hugo Capeto. Basicamente, a França - povo, nobreza e Igreja- dos anos 1320 suponha estar amaldiçoada a dinastia capetíngia, do Rei Filipe IV, o Belo, (o Rei de Ferro), por causa da morte injusta do grão-mestre templário Jacques de Molay, executado sete anos depois de dissolvida a ordem, e que lançara, no último de seus suspiros, uma praga contra o rei, o Papa e o cavaleiro Nogaret (ambos morreram em menos de um ano, tal como o executado templário o disse). Maurice Druon, autor dessa saga épica, identifica esse sentimento negativo e de repúdio aos Capeto (que unificaram o reino, protegeram  o comércio, revolucionaram a Administração Pública , diminuiram o poder dos barões, acabaram com a servidão, racionalizaram os impostos, unificaram a moeda, pesos, medidas, e a própria língua francesa e, assim, transformaram um reino pobre e constantemente acossado pelos vizinhos em maior força da cristandade) como uma reação contra o Estado moderno e burocrático, de índole progressista, que nasceu, principalmente, do governo do chamado Rei de Ferro. Mais precisamente, se trata da resistência das práticas feudais e de diversos costumes - a usura dos comerciantes, a compra de cagos e indulgências na Igreja, a super-descentralização do poder politico, pelo qual qualquer senhor feudal dispunha a livremente da vida de seus servos e, estes, por óbvio, podiam usar suas conecções com os barões para se furtar às obrigações impostas aos demais, numa forma primitiva de clientelismo-  contra o progresso e a modernização do país.

Muito semelhante, claro, à todas as elites mal-acostumadas com seus privilégios - bem como classes populares, é claro!- que insistem em defender seus interesses mesquinhos contra o bem-comum. Como, é claro, nossa elite neoliberal o faz, renhida e prestigiosamente, institucionalizando a luta de todos contra todos, da mesma forma que o sistema feudal fazia (pelo menos, entre nobres e nobres, sendo as vítimas, os populares...). A luta entre Estado e particulares, hoje ou em 1326, continua atual, proeminente e, sobretudo, diz respeito a todos nós.




"O povo suspirava. A maldição de Tiago de Molay parecia esgotada. A linhagem dos Capetos, que, em trezentos e quarenta e um anos, tinha dado, sem interrupção, catorze reis à França, mas dos quais os quatro últimos tinham sido varridos em menos de quinze anos, estava extinta, pelo menos em seu ramo mais velho. A ausência de filho homem, em todas as famílias, das mais ricas às mais pobres, é sempre considerada, se não como infelicidade, pelo menos como inferioridade. Para uma casa real, essa incapacidade dos filhos de Filipe, o Belo, no que se referia à procriação de descendentes masculinos, era julgada como a manifestação de um castigo.
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As coisas iam mudar. Febres súbitas assaltam os povos, e suas causas devem ser procuradas no deslocamento dos astros, de tal forma escapam a qualquer outra explicação: vagas de cruel histeria, como tinham sido a cruzada dos pastorzinhos ou a chacina dos leprosos, vagas de euforia delirante, tal como a que acompanhou a subida de Filipe de Valois ao trono. O novo rei era de belo porte e possuía aquela majestade muscular necessária aos fundadores de dinastia. Seu primeiro filho era um menino, que já contava nove anos de idade e parecia robusto. Tinha, também, uma filha, e sabia-se, pois as cortes não fazem mistérios dessas coisas, que ele honrava quase que todas as noites sua esposa grande e coxa com um entusiasmo que os anos não amorteciam. Dotado de voz forte sonora, não era um tartamudo como seus primos Luís, o Turbulento, e Carlos IV, nem um silencioso como Filipe, o Belo, ou Filipe V. 

Quem podia se opor a ele, quem podiam lhe opor? Quem pensava em ouvir, naquele regozijo em que a França se agitava, a voz de alguns doutores em direito, pagos pela Inglaterra, para formular representações, sem convicção? Filipe VI chegava ao trono por consentimento unânime. Entretanto, não passava de um rei por acaso, um sobrinho, um primo de rei como tantos outros, um homem afortunado entre a sua parentela. Não era um rei nascido de rei para ser rei, não era um rei designado por Deus, um rei recebido. Era um "rei achado" num dia em que faltara um rei. Aquela expressão, inventada na rua, em nada diminuía a confiança e a alegria do povo.

 Tratava-se apenas de uma dessas expressões de ironia com que as multidões gostam de colorir suas paixões, e que lhes dão a ilusão de familiaridade com o poder. João, o Louco, quando repetiu a palavra a Filipe, recebeu um pontapé que o atirou como uma bola sobre o lajedo. Contudo, acabava de pronunciar a palavra senhora de um destino. Pois Filipe de Valois, como todo parvenu, quis mostrar que era bastante digno, pelo valor natural, da situação que lhe coubera, e exagerou, em seus atos, a idéia que se pode fazer de um rei

Porque o rei tem o exercício soberano da justiça, ele mandou, dentro de três semanas, enforcar o tesoureiro do último reinado, Pedro Rémy, do qual se dizia ter traficado bastante com o Tesouro. Um ministro das Finanças na forca é coisa que sempre rejubila o povo, e a França imaginou que tinha um rei justo. 

O príncipe é, por dever e função, o defensor da fé. Filipe lançou um decreto que reforçava os castigos contra os blasfemadores e aumentava o poder da Inquisição. Assim, o baixo e o alto clero, a pequena nobreza e os beatos de paróquia ficaram tranqüilizados: tinha-se um rei piedoso. 

Um soberano deve recompensar os serviços prestados. Ora, quantos serviços tinham sido necessários a Filipe para garantir-lhe a eleição! Mas um rei deve igualmente zelar para não fazer inimigos entre os que se mostraram, sob seus predecessores, bons servidores do interesse público. Assim, enquanto eram mantidos em seus cargos quase todos os antigos dignitários e oficiais reais, criavam-se novas funções ou duplicavam-se as existentes, para dar lugar aos mantenedores do novo reinado e para satisfazer as recomendações apresentadas pelos grandes eleitores. E como a casa de Valois já possuía padrão régio, aquele padrão superpôs-se ao da antiga dinastia, e foi uma grande corrida aos empregos, aos benefícios largamente distribuídos. Tinha-se um rei generoso. [Acima, o rei Eduardo III presta homenagem a Felipe VI].

Um rei deve ainda trazer prosperidade a seus vassalos. Filipe apressou-se a diminuir, e mesmo, em alguns casos, a suprimir as taxas que Filipe IV e Filipe V tinham lançado sobre o comércio, sobre os mercados públicos e sobre as transações de estrangeiros, taxas das quais se dizia que entravavam as feiras e os negócios. Ah! o bom rei que fazia cessar o tormento representado pelos coletores do ministro das Finanças! Os lombardos, que tinham emprestado tanto a seu pai, e aos quais ele próprio devia ainda tanto, abençoavam-no. Ninguém pensava que o fisco dos antigos reinados produzia efeitos a longo prazo, e que se a França era rica, se ali se vivia melhor do que em qualquer outra parte do mundo, se todos se vestiam com bons tecidos e muitas vezes de peles, se havia banhos e estufas até nos lugarejos, devia-se isso aos últimos Filipes, que tinham sabido assegurar a ordem no reino, a unidade da moeda e a segurança no trabalho. 

Um rei... um rei deve também ser um sábio, o homem mais sábio entre seu povo, e Filipe começou a tomar um tom sentencioso para enunciar, com sua bela voz, graves princípios onde era possível reconhecer a maneira de seu antigo preceptor, o arcebispo Guilherme de Trye. "Nós, que sempre quisemos conservar razão...", dizia ele, a cada vez que não sabia que partido tomar. E quando sentia ter tomado o caminho errado, o que lhe acontecia com freqüência, vendo-se obrigado a desdizer o que tinha ordenado na antevéspera, declarava, com a mesma soberba: "Coisa razoável é modificar seu propósito". E, ainda: "Sempre vale mais prevenir que ser prevenido", enunciava, pomposamente, aquele rei que, em vinte e dois anos de reinado, jamais cessaria de passar de surpresa a surpresa infeliz! Jamais monarca algum lançou de tão alto tantos lugares-comuns. Pensava-se que ele estava refletindo; na verdade pensava apenas na frase que devia formular para se dar o ar de ter refletido. Mas sua cabeça estava tão oca quanto uma noz de inverno. 

Um rei, um verdadeiro rei, não nos esqueçamos, deve ser bravo, valente faustoso! Na verdade, Filipe não tinha outra aptidão a não ser a das armas. Não para a guerra, mas para as armas das justas e torneios. Como instrutor de jovens cavaleiros, teria feito maravilhas na corte de um barão mais modesto. Soberano, seu palácio se assemelhava a um dos castelos dos romances da Távola Redonda, muito lidos na época, e com os quais ele alimentara a imaginação. Foram inúmeros torneios, festas, banquetes, caças, divertimentos, depois mais torneios, com orgias de plumas sobre os elmos e cavalos mais ornamentados do que as mulheres. Filipe ocupava-se muito gravemente de seu reino, uma hora por dia, depois de uma justa de onde voltava escorrendo suor, ou de um banquete de onde saía com o ventre pesado e o espírito nebuloso. Seu chanceler, seu tesoureiro, seus inúmeros oficiais tomavam decisões por ele, ou então iam buscar ordens junto a Roberto d'Artois. Este último, em verdade, mandava mais do que o soberano. Nenhuma dificuldade se apresentava a Filipe sem que ele apelasse para o conselho de Roberto, e todos obedeciam ao conde d'Artois, sabendo que qualquer decreto de sua parte seria aprovado pelo rei. 

Dessa maneira, chegou-se à sagração, onde o arcebispo Guilherme de Trye colocaria a coroa sobre a fronte de seu antigo aluno, e cujas festas, no fim de maio, duraram cinco dias. (...) Havia cem anos que no reino de França não se bebia tanto: servia-se a cavalo, nos pátios e nas praças. ''




(DRUON, Maurice. O Leão e a Lis. Círculo do Livro: São Paulo, 1977. Pgs. 30-32)

Algumas observações rápidas sobre os trechos destacados tem um grande valor histórico para os que apreciam Ciências Políticas, História, Sociologia e até Direito. Veja que, ao subir ao poder, Felipe mandou assassinar o ministro das finanças do último reinado, responsável pelo enriquecimento do reino. Assim, transferia a carga negativa dos atuais problemas do reino a um homem já odiado que, como bode expiatório, foi sacrificado para deleite do povo. Isso representa, além de uma ferramenta de controle político (matar cobradores de impostos se tornou prática comum entre os reis europeus para aumentar sua popularidade), uma forma de rompimento com a política fiscal expansionista da monarquia, levada a cabo pelos últimos reis. A supressão dos impostos, por sua vez, tinha o intento de enfraquecer o Estado e e agradar às facções feudalistas - e que desejavam o poder mínimo ao rei- e comercialistas, que puderam pintar e bordar sem a força da monarquia a lhes vigiar. Esse Estado fraco não conseguiria, tempos depois, resistir a Guerra dos Cem Anos e quase foi destruído, junto com a própria França. (Acima, o Rei Felipe VI, bispos, nobres e ministros em reunião).

Por outro lado, o rei aumentou o poder da Inquisição, que, na época, era uma ferramenta política da sociedade feudal para esmagar as contestações ao sistema - e a própria religião. Assim, delegou parte do poder repressivo do Estado a um organismo privado. Com certeza, o mais impressionante dos feitos do rei foi dobrar o tamanho da máquina pública (aproveitando as receitas fartas deixadas em reerva pelos últimos reinados) para nela empregar todos seus apoiantes e os indicados dos grandes nobres e banqueiros italianos que haviam contribuído para a ascensão de Valois. Tratou-se da fundação de um Estado servido por indivíduos meramente parasitários, ao contrário da ideia que predominou durante o governo do Rei de Ferro: a de que os servidores do Estado deveriam dedicar-se a tarefas técnicas e, de acordo com o mérito, obter promoções. A burocracia foi derrotada pela mediocracia (de medíocre, mesmo) ou parasitocracia... (acima, moeda oficial do reinado de Filipe VI).

Por sua vez, a última das estratégias de dominação de Valois foi a promoção de caros e faustosos torneios, que, ao mesmo tempo, faziam delirar a nobreza e o populacho. Ninguém questionava o fato do reino estar desgovernado, onde emergiam inúmeras revoltas e conflitos, agravado pela queda da capacidade do Estado de manter exércitos. Tratou-se de uma aplicação da antiga política do panis et circenses (ainda mais, sobre as próprias elites reinantes) só que, dessa vez, a maioria da população não tinha pão. Ou, pelo menos, deixaria de ter, após as guerras, pestes e fomes que viriam.

Por último, atente-se para o verdadeiro poder por trás do trono. Roberto III, conde titular do Artois, foi um dos grandes atores políticos da França e uma peça fundamental na Guerra dos Cem anos e sua eclosão. Sempre, claro, movido por interesses pessoais: reaver seu condado, o Artois, tomado injustamente por sua tia, Mafalda. Foi tendo isso em mente que Roberto, quando da morte de Carlos IV e da eleição de um novo rei - o que ocorria quando a dinastia reinante extinguisse seus descendentes masculinos- articulou a vitória de Valois, distribuindo cargos, favores e mimos entre os eleitores, os doze pares da França. Foi Roberto o verdadeiro arquiteto dessa reação ao Estado moderno que se formava no reino, encarnando os interesses pessoais dos nobres e burgueses, pelo menos no momento, dirigidos contra a centralização do poder político nas mãos do rei; todos os decretos do rei, promulgados sob seu conselho, objetivavam, para o conde, preparar o terreno para que este próprio alcançasse seus objetivos. No mais, o poderoso conde cairia em desgraça pouco depois, quando tentou falsificar documentos a fim de provar sua pretensão ao Artois (Acima, luminária francesa da época retrata o processo aberto pelo Parlamento contra D'Artois). Proscrito, teve de fugir do reino e, indo aportar na Inglaterra, lançou nos ouvidos do Rei Eduardo III, que tinha pretensões à coroa da França, que a coroa poderia ser dele, tal era o estado de fraqueza do reino franco. E, assim, tivemos a Guerra dos Cem anos...

Essas práticas políticas, principalmente a gerência do Estado por grupos e interesses estritamente privados (privatização do Estado), a força política dos latifundiários ( a UDR de hoje não é uma aristocracia feudal bilionária?), a distribuição de cargos e a farra com o Tesouro Público em atividades pequenas, incidentais e de mera distração da multidão são hoje os pilares da política brasileira. Sua origem está diretamentre projetada sobre o período feudal e seu expoente, o Reino da França. A diferença primordial entre a França Valois e o Brasil de hoje, além do recuo histórico, é a inexistência, em terras tupiniquins, de um código moral e religioso rígidos que coibam os abusos das classes dirigentes- antes, há a glorificação do "jeitinho'', do drible às leis, das pequenas ilegalidades que, como na França, funcionam como meios de aferir o status do indivíduo.

 Por outro lado, os pobres brasileiros continuam sujeitos  - e pior, os elegem ou admiram de boa vontade!- a governantes e líderes egocêntricos (religiosos, políticos, militares... será que Malafaya, Eike Batista, FHC, Sarney, Calheiros, Serra, Collor, Eduardo Campos e outros são tão diferentes dos Valois?) e incompetentes, como Filipe VI. Esses senhores são uma verdadeira "família real'' brasileira, unida em despojar o país e manipulá-lo a bel prazer, objetivando a satisfação de seus desejos mesquinhos. 

O nosso sistema presidencialista, por outro lado, é claramente resquício de uma forma de monarquia, onde o presidente-rei, dotado de grandes poderes, os usa para consolidar sua base de apoio, distribuindo benesses a um punhado de "amigos do rei'', pagas com os impostos suados dos cidadãos; a política nacional nada mais é que a disputa de interesses privados, de classes dominantes (que agem como uma verdadeira nobreza!), pelo controle dos recursos produzidos pelo esforço coletivo, para satisfazer os próprios intentos dos poderosos, da mesma forma que no período medieval e, identicamente, essa disputa privada é maquiada por ideais (o ideal do cavalheirismo e o cruzadismo ontem, a eficiência da economia e o "desenvolvimento'', hoje) que acabam amenizando o controle coletivo sobre os atos dos grupos políticos. Basicamente, a França via o reinado de vários pequenos "monarcas'' sociais: senhores feudais, burgueses, banqueiros (já numerosos e poderosos), facções da Igreja, a própria família real. O Brasil, por sua vez, está sob o reinado dos seis gigantes: oligarquias políticas, latifundiários, industriais, banqueiros, a mídia e empreiteiras,, que formam nossos "patrícios''. Mudaram os rostos, mas as coroas continuam plantadas sobre o monopólio da política, do dinheiro, da apropriação econômica dos bens coletivos e, sobretudo, do controle da informação (a mídia, como a Igreja, pronuncia os dogmas e dita as modas hoje em dia, bem como controla o comportamento individual...).

Quanto ao resto - o cenário de despreocupação diante da anarquia, a alienação do povo e das elites (o personalismo na política é algo dolorosamente presente, na monarquia francesa e no "caudilhismo'' brasileiro), enfraquecimento do Estado e presença de adversários externos- tudo se assemelha... será que o Brasil evoluiu tão pouco ao ponto de que uma crônica medieval nos diga tanto sobre nossa própria nação? Enquanto tentamos responder, aproveitemos essa imortal idade média brasileira... e vida longa a nossos reis!