domingo, 29 de abril de 2012

Verdades inconvenientes sobre a crise econômica mundial: a crônica da mesma história


Um detalhe específico chama a atenção nestes dias de crise econômica global. O capitalismo nos ensina, como um dogma racional, que devemos alocar recursos, com o mínimo de gastos, para satisfazer os compradores. Ou seja, que devemos operar em custo-total mínimo, denominado de "ótimo'', em obediência ao princípio da eficiência. Produzir o máximo com o custo mínimo; na verdade, quanto mais se produz, mais se faz cair o custo total médio por unidade. 

Ou seja, o sistema tem de estar em contínua expansão. Daí Marx ter raciocinado que, um dia, o capital não poderia mais se multiplicar. Não haveria mais consumo para tanta oferta, e nem renda para o consumo, dada a concentração de lucros nas mãos de uma classe reduzida. E tal concentração seria proveniente do fato dos trabalhadores receberem cada vez menos pelo seu trabalho, no que Marx chamou de "Mais-valia''. E, claro, o capitalismo cairia. Infelizmente, Marx errou sua análise, mas não é o que quero aqui discutir neste momento de tensão mundial.



O capitalismo soube aproveitar das próprias contradições para evoluir de um período de ingênuo liberalismo, onde o Estado se limitava a emitir moeda e policiar a sociedade, permitindo o livre-comércio, causador, com a industrialização, da formação de cartéis, trusties e holdings, após a terceira metade do século XIX: o excesso de empresas no mercado levou a uma queda dos preços e dos lucros, destruindo as pequenas empresas, concentradas pelas grandes que, para fugir da deflação europeia (a "Longa Depressão''), invadiram os mercados consumidores mundo a fora. O imperialismo se formou, concentrando riquezas em escala global, como previsto por Marx. Essa festa com os recursos alheios e a competição pelos mercados levaram às duas guerras mundiais. A especulação financeira, o arrocho dos salários, a superprodução e as dívidas entre os países acabaram por arquitetar a maior crise do capitalismo, em 1929: para consumir, as famílias  pediam dinheiro emprestado aos bancos, e, para ganhar alguma coisa especulavam na Bolsa, cujas ações inflaram, trazendo uma perspectiva de lucro fácil a curto prazo; as indústrias e fazendas produziam no ritmo da guerra (não diminuíra, desde 1918), inundando o mercado com produtos cada vez mais baratos, que corroíam o lucro. Esses empresários não puderam pagar empréstimos feitos aos bancos, que cobraram; os capitalistas demitiram, para poder pagar seus débitos; com desemprego, o consumo caiu, e os desempregados não puderam pagar seus débitos com os bancos. Correram, então, para vender, todos ao mesmo tempo, as ações, que desabaram em um único dia, destruindo as próprias indústrias e bancos que eram compostos dessas ações. A crise transmitiu-se ao resto do mundo pela cobrança que os bancos americanos fizeram de seus devedores externos que, não pagando, entraram em crise. O PIB mundial caiu pela metade, no mesmo ano.
Após a década de 30, contudo, os Estados passaram a adotar políticas intervencionistas, por meio das quais redistribuíram a renda acumulada, impondo uma nova legislação social (que caracterizou o Estado de bem-estar social) e, por meio da adoção de déficits públicos controlados, passaram a estimular a demanda. Ou seja, a partir dos gastos e medidas do Governo, aumentou-se a demanda, os investimentos, os empregos, a renda, os lucros, o PIB, através do efeito multiplicador dos gastos do governo. O sistema de cunho keynesiano funcionou perfeitamente por décadas, protagonizando o período de maior crescimento econômico da história do capitalismo, onde o Estado, mesmo a partir de déficits fiscais crônicos, puxou a locomotiva da economia. Em tese, toda vez que a renda acumulava-se, era redistribuída por meio da cobrança de impostos sobre o patrimônio das classes acumuladoras e revertidas, ou em forma de benefícios (ou através de salários mais altos) para a população. Com saúde, educação e segurança públicos e de qualidade garantidos pelo Estado, toda a renda das famílias era gasto com consumo (que era definido em função da renda líquida) . No Brasil, a maior expressão do keynesianismo e do Estado de bem-estar foram os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubistchek, onde o primeiro construiu uma estrutura de base para a industrialização, uma legislação social (salário-mínimo, aposentadoria etc), protegeu indústrias nacionais e o segundo terminou o processo, transformando o Estado no grande parceiro do capital industrial externo, construindo mega-obras públicas, distribuindo benefícios fiscais e adotando medidas protecionistas. Maravilhoso, não? 

O problema maior surgiu na década de 1970, já durante a ditadura militar, que levou a diante o modelo juscelinista; na verdade, o regime militar, após destruir a ação social do Estado, arrochar salários e, partir deste esforço fiscal, conseguiu derrubar os custos de produção no Brasil, atraindo inúmeras empresas estrangeiras, beneficiadas ainda pela infraestrutura construída, através de grandes endividamentos públicos, pelo governo militar. A crise do petróleo elevou drasticamente os preços mundiais, já que o este era a base energética da produção industrial. Assim, as pessoas pararam de consumir, poupando a renda. Mas, ao invés de cair, os preços continuavam a subir, já que os países adotaram medidas protecionistas (taxando importações e afetando toda a economia) e os governos continuaram gastando demais, ficando sem receitas para reativar a demanda. Deu-se a terrível "stagflation'', estagnação com inflação, que devorou os salários e destruiu os empregos. Assim, a crise fiscal do Estado, visto como responsável pela crise, foi o principal objeto de ataque da teoria neoliberal, surgida como salvadora de um sistema que ameaçava ser devorado pelo império vermelho do comunismo. Seu alvo foi o déficit fiscal defendido pelo keynesianismo: cortar gastos e permitir a livre-concorrência naturalmente conduziria ao equilíbrio entre demanda e oferta, tanto de mercadorias quanto da moeda. No Brasil, o endividamento externo explodiu através do aumento dos juros mundiais, ocasionando a Crise da Dívida de 1982.

Os novos dogmas do capital mudaram a forma do Estado atuar na economia. Em primeiro lugar, cortaram-se violentamente os gastos sociais e estimulou-se o aumento das taxas de juros, para estimular a poupança e, assim, atacar a inflação. Em seguida, abriram-se as economias protegidas, permitindo a livre competição das empresas, desconsiderando a ideia keynesiana de proteção da indústria nacional tendo em vista a preservação dos níveis de emprego. Por último, o Estado de bem estar foi desmontado, revogaram-se as leis que concediam rendimento mínimo, privatizou-se as previdências sociais, a educação, saúde e empresas estatais.

O efeito foi arrasador. Os preços desabaram, diante da competição com os produtos externos, mais baratos (principalmente os oriundos da China), e as empresas buscaram a todo custo reduzir custos. Investiu-se pesado em tecnologia e informação- o que deu na revolução técnico-científica e na globalização da economia, fruto da expansão final das transnacionais em busca do menor custo de produção. Fábricas foram descentralizadas, filiais foram enviadas para o terceiro mundo para aproveitar-se de sua mão-de-obra barata e fartura de recursos naturais, além de pegar carona nos favorecimentos fiscais dos governos ditatoriais. Com o aumento da poupança, decorrente do aumento dos juros, os bancos acumularam grande soma de capitais e acabaram financiando essa festa- além de redistribuir a renda, sob a forma de crédito a juros baixos, para os consumidores do mundo inteiro. Interessante constatar que, além do mais, o corte de impostos efetuado pelo Estado, e a queda da estrutura de bem-estar, os serviços anteriormente públicos constituíram uma nova fonte de renda para as empresas. Só a saúde absorveu cerca de 17% do PIB norte-americano. 

Os investimentos em tecnologia e informação efetivaram a demanda por profissionais altamente qualificados- o problema é que apenas os ricos podiam pagar por esta qualificação, dentro de um mercado de trabalho altamente competitivo. Ou seja, criaram-se novos mercados consumidores com base em tais profissionais, caracterizados pelo seu alto poder aquisitivo. O desemprego foi inevitável- boa parte da população jazia na desqualificação, sem acesso aos serviços essenciais que podiam possibilitar condições de competitividade com indivíduos de classe mais alta. Como as empresas se globalizaram, cortando cada vez mais mão-de-obra, o desemprego estrutural acometeu os países subdesenvolvidos e resultou na quebra do poder dos sindicatos, peça-chave na manutenção da legislação do Welfare State. E, claro, a própria competição por empregos destruiu o sentimento de classe. A ideia que norteava o neoliberalismo era a destruição das barreiras econômicas globais e a relegação das funções do Estado à simples manutenção do equilíbrio monetário. O consumidor, segundo Friedman, um arauto e entusiasta da ideologia, realizava suas escolhas econômicas com base na previsão de renda futura, sempre procurando encontrar meios de consumir mais; daí a distribuição de crédito barato ter criado um modelo de consumo baseado no endividamento vicioso e cíclico, sempre se prezando pela queda dos custos de produção- inclusive, com relação à redução de salário, já que a oferta de mão-de-obra só aumentava, reduzindo a capacidade de pagamento dos endividados...

Em suma, o capitalismo realizou seu grande sonho: cortou gastos, produziu de forma barata e ainda concentrou renda, sempre sob a égide dos bancos, que distribuíam a renda sob a forma de empréstimos, e a recolhiam acrescida dos juros, concentrando mais riqueza, à base do esforço coletivo. E, claro, os preços só faziam cair, dada as melhorias técnicas e redução dos encargos trabalhistas. O Estado ajudava tributando o consumo e pagando aos bancos para manter os juros altos, ou seja, tirando das classes consumidoras e entregando aos ricos, além de manter os impostos sobre importações próximos do zero. Esse sistema, batizado de "consumo via endividamento'', resultou na maior concentração de renda da história, com cerca de 1% dos habitantes da Terra detendo 55% da renda mundial... 





Claro que o neoliberalismo teve variantes. Na Europa, preservou-se a legislação social mais que nos EUA. Mas o efeito foi igualmente devastador: sem educação ou saúde, as famílias mais pobres não puderam competir por empregos. Caíram na pobreza, viu-se o aumento da mortalidade infantil, do analfabetismo, da moradia precária; e, por fim, aqueles que tinham empregos viram suas rendas diminuírem, já que não existia mais lei do rendimento mínimo. O salário era determinado pelas leis do mercado, que o arrochavam, é claro. Nos países subdesenvolvidos, invadidos pelas transnacionais, o que se constatou foi a mesma redução da renda dos consumidores e, contrariando os investimentos, via-se aumento do desemprego, ocasionado pelo uso maciço de mão-de-obra barata. Então, os Estados seguiram o receituário neoliberal e elevaram os juros, cortaram impostos e abriram a economia. O resultado foi queda astronômica do nível de empregos, endividamento do Estado (para manter os juros altos), fim dos serviços públicos (cortados porque o Estado não tinha mais recursos para banca-los), aumento da desigualdade (pela adoção do sistema tributário indireta, sobre o consumo) mas também a formação de uma classe média alta, aliada aos novos investimentos e que, beneficiada pela nova legislação tributária e monopolizando o acesso à qualificação profissional (leia-se: educação), passou a monopolizar, por extensão, o mercado de trabalho. Mas o pior foi o aumento de 15% do analfabetismo, de 24% na mortalidade infantil, aumento dramático da violência e do número de homícidios e roubos, do salto de 500 para 1,25 bilhões de pessoas em situação de grave risco alimentar (fome), e de 1,5 para 3 bilhões o número de pessoas que vivem com menos de dois dólares por dia. Sem contar que estes três bilhões não possuem acesso a sequer energia elétrica- enquanto o resto do mundo está "conectado''. Por fim, os Estados quebraram, os bancos enriqueceram, formaram-se novas elites consumistas (mercados de alto poder aquisitivo). O Brasil se enquadra, com algumas ressalvas, nesta categoria.

É óbvio que você deve ter inferido que este sistema esteve por trás da crise de 2008. E esteve. Uma hora, os pobres consumidores não puderam pagar pelos empréstimos feitos pelos bancos. E os bancos, por isso, não puderam pagar outros bancos, aos quais deviam, já que, desde que o consumidor tomava crédito pra consumir, este débito era usado como parâmetro de especulação: um banco espera receber X (quantidade emprestada) + juros, enquanto outro banco, que emprestou ao último, espera receber X+juros+ juros, usando essa expectativa de lucro para pegar a mesma quantia com um terceiro banco, para emprestar mais ao primeiro banco... E assim em diante. O que acontece, por exemplo, se o consumidor não pode pagar sua dívida? E se, além disso, não tiver bens para serem penhorados? E se, a partir desse crédito, o consumidor compra casas de forma adoidada, e não paga o Banco? E se o Banco toma a casa, via hipoteca, do indivíduo, acabará pondo diversas delas em mercado (já que os outros bancos vão fazer a mesma coisa...): o resultado é que o preço dessas casas, elevado pela alta procura, irá despencar, por que ninguém irá comprar. 

A bolha imobiliária estoura, com os Bancos da ponta da cadeia se tornando insolventes e quebrando o outro Banco que lhe emprestara, que por sua vez deixa de pagar ao outro, e assim por diante, que passam a cobrar os grandes credores, as indústrias. Estas, com a queda do consumo, vêem suas mercadorias perderem preço e seus lucros caírem, e acabam por cortar empregos para poupar custos, diminuindo o consumo, aprofundando a deflação e causando mais inadimplência bancária, que quebram de vez. Esse foi o retrato da crise do Sub-prime (a categoria dos devedores dos bancos, algo como "segunda categoria'') americana, que se repetiu ao redor do mundo, dada a globalização do sistema  financeiro. O resultado foi a intervenção do Estado (!), que salvou os bancos, ao custo da explosão da Dívida Pública, cujos credores são bancos globais que escaparam da crise. Que ameaçam cobrar a dívida. Eis o cenário delicado da Europa atual.

Eu me pergunto se o neoliberalismo e o capitalismo são realmente eficientes. Se vale a pena, em nome do consumo, manter mais da metade da população mundial na fome ou miséria, e o resto, tirando os 900 milhões de europeus e americanos endinheirados, na miséria do desemprego e sub-emprego. Se, para um empresa lucrar um pouco mais, é preciso cortar legislações sociais, privatizar escolas, hospitais e a previdência social. Se todas as modernidades tecnológicas engendradas pelo capital compensam a desqualificação de mão-de-obra e o desemprego assustador que afeta a juventude (mais de 25%). E o pior de tudo é que o crescimento econômico foi ínfimo- 1,8% ao ano, contra vigorosos 5,8% do capitalismo social de outrora. Vide a gestão tucana e neoliberal da economia brasileira...

Por fim, com esse cenário, Marx volta definitivamente a estante daqueles que não se rendem ao pensamento dogmático liberal. Daqueles que não votam em partidos de direita, defensores dessa tragédia que é o neoliberalismo como ideal a ser perseguido. Não se enganem, são fantoches bem remunerados para enganar vocês, seduzirem os incautos para cair no buraco do consumo por endividamento. Não representam os seus interesses, mas os daqueles que financiam suas campanhas. Daí o financiamento público de campanhas não conseguir decolar na maioria dos países, inclusive no Brasil. O pior de tudo é que mesmo a esquerda política está comprometida com o capital financeiro. Você acha que Lula foi "melhor'' que FHC, distribuindo renda etc etc etc? Tenho péssimas notícias para você... não que se negue as benfeitorias de Lula, que foram muitas. Mas o efeito de suas políticas tem caráter duplo, como uma faca de dois gumes. São verdadeiras continuidades do sistema neoliberal. Mas o drible da crise, efetuado pelo Brasil, merece um artigo especial, que será postado em breve.

Alguma dúvida de que o capitalismo é ineficiente? Dê uma volta pelas periferias de qualquer grande metrópole... ou no interior do país... como se diz, só vendo para crer.

"Os Donos do Poder'': a história do patronato político brasileiro


"Os Donos do Poder'' foi uma obra escrita pelos idos dos anos 1950, pelo professor Raimundo Faoro. Todavia, mesmo após mais de 50 anos de sua publicação, poucas obras permanecem tão atuais e elucidativas sobre as práticas políticas brasileiras.

 Faoro analisa as origens da formação do "patronato político brasileiro'', a partir de uma combinação da metodologia de Max Weber com o marxismo da Escola de Frankfurt. Assim, Faoro traça uma maravilhosa evolução histórica sobre os principais institutos que norteiam a classe política brasileira, desde suas raízes na monarquia militar portuguesa até o início do século XX. O patrimonialismo, as práticas eleitorais fraudulentas,  repressão virulenta contra mudanças sociais, o nepotismo, o sistema de boas relações e o modelo agrário são dissecados e elucidados nos quase mil anos de história política analisados. Assim, a estrutura de poder regente do Brasil é revelada em toda sua amplitude e densidade.

Inicialmente, Faoro traça as origens e principais características da monarquia portuguesa. Aqui, o autoritarismo, a aliança com o clero, a estratificação social e, principalmente, a indistinção entre público e o privado são, a seu ver, as principais marcas legadas pela Revolução de Avis ao posterior sistema político brasileiro. A colonização, sob a égide do mercantilismo, decorre naturalmente de tal evento, e, por sua vez, implantou-se no Brasil uma sólida aliança entre grandes produtores rurais e a débil autoridade estatal; a aventura ultramarina e seus objetivos são tidos como determinantes da condição brasileira como colônia agorexportadora. A própria distribuição de terras em sesmarias, grandes latifúndios e capitanias revela a pura e simples delega do poder político (de julgar, legislar e governar) pelas mãos da monarquia à prematura elite rural brasileira, em um processo inverso ao ocorrido em Portugal: enquanto o pequeno reino centralizou-se sob o rei, no Brasil implantou-e uma espécie de feudalismo tropical, nos moldes do europeu.

Todavia, aponta-se uma espécie de reação da Coroa a essa pulverização do poder político, com a fundação dos governos-gerais, um instituto destinado a concentrar os esforços difusos e manter a integridade territorial da colônia. Trata-se do germe de uma estrutura estatal nacional, cuja única finalidade é assegurar uma união de forças, por parte dos latifundiários, com vistas a manter o regime colonial, o escravismo e a hegemonia do capital externo (português) sobre a colônia. A criação dos municípios fez parte do plano de centralização, que acabou invertido em favor das incipientes oligarquias regionais. Traça-se, então, as origens do funcionalismo público brasileiro, em torno dessa oposição centralismo/regionalismo, que,        antes de se anularem, complementavam-se em um sistema exploratório, do qual o funcionário público era uma peça de execução, sempre pautando-se pela ilegalidade, troca de favores e descaso coma coisa pública.
A contestação ao regime monopolista colonial engendra o cabo de guerra que derrubou o domínio português e permitiu a independência política nacional. O império surgiu sob um amontado de autarquias agrícolas, unidas apenas em torno da manutenção da ordem, já que sequer eram integradas entre si, antes com os mercados europeus, aberto aos produtos primários brasileiros. Todavia, os ímpetos centralizadores da monarquia, assentada nos portugueses remanescentes e centrados em torno do imperador, foram derrotados com a abdicação deste último e a descentralização administrativa, causadora dos piores distúrbios e contestação ao regime fundiário e estratificado, de viés feudal, vigente no novo país. Todavia, doante do caos, a elite nacional uniu-se novamente e, tendo a Monarquia à testa, esmagou as revoltas e, com vistas e afirmar a unidade nacional de uma vez por todas, permitiu ao imperador a concentração de poderes máximos. 

Organizou-se uma verdadeira pirâmide social, onde o imperador, ao topo, trocava favores com os barões latifundiários, senadores, deputados e militares, e estes, por sua vez, com fazendeiros menores, presidentes de províncias, subordinados e coronéis locais. O absolutismo, representado institucionalmente pelo poder moderador, consistiu numa instância para fundar um equilíbrio político, resolver as contendas políticas e ainda servir de "mão visível'' para impulsionar a nascente economia cafeeira; uma economia sob a orientação do Tesouro imperial, que desvalorizava a moeda quando preciso, oferecendo crédito farto ao latifúndio. Estabilidade para explorar, eis o grande objetivo do primeiro reinado. O funcionalismo público institucionaliza os roubos, lavagens de dinheiro, favorecimentos pessoais, estando a população excluída dos serviços públicos essenciais. 

A queda da Monarquia estaria associada à sua ineficiência em levar a frente o rearranjo do modelo econômico agroexportador, de diretriz liberal e federalista. Basta dizer que as elites resolveram conduzir-se por elas mesmas, sem um "pai'' coroado a protegê-los, literalmente dividindo o país em zonas de influência, construindo, para tal, um modelo político viciado, baseado na troca de favores típica do império, hierarquizado desde o presidente da República até os coronéis do interior. Um cedia apoio ao outro, ao passo que estes eram apenas subordinados às decisões imperiais centralizadas anteriormente, que sufocava e impedia o aumento dos lucros. O coronelismo, a política dos governadores e as coligações políticas marcam, resguardadas pelo potente braço militar que levou a Monarquia à bancarrota, a República Velha. Todavia, as contradições internas do novo sistema (a industrialização necessária à produção de café gerou uma classe média que, excluída do poder, passou a reivindicá-lo, através dos tenentes) e as fragilidades das alianças políticas (as constantes traições, a dissolução de alianças, a disputa para vilipendiar a Coisa Pública) levaram ao suicídio do regime republicano

Novamente, o Estado que surgiu desse colapso foi marcado pelo centralismo, conduzido por um chefe de Estado forte e carismático, que reorganizou a economia, tornando o Estado, novamente, o condutor da economia, agora rumo à industrialização e aos tempos modernos. A força do poder ditatorial esmagou os localismos regionais e as oligarquias, transferindo o eixo econômico do campo para a cidade industrializada, promovendo, para tal, uma revolução administrativa, com a implantação do modelo burocrático, o combate à corrupção, a adoção de códigos de ética do funcionalismo e a quebra, inédita, do fisiologismo da política. Ao fim da Era Vargas e com o início da IV República, Faoro comenta, com entusiasmo, que o patrimonialismo e o fisiologismo, além da formação de oligarquias, seriam exterminadas pelo progresso pela entrada, do brasil, no clube das nações modernas, industrializadas e democráticas. 

Infelizmente, Faoro não pôde acompanhar a não-ocorrência de suas previsões. Quase 60 anos após o lançamento de seu livro, as bancadas ruralistas continuam a dominar a política nacional, o Estado continua com sérios problemas de gerência fiscal ocasionados pelo seu loteamento político e pela corrupção crônica e a sociedade continua com ranções estratificatistas. Ler "O s Donos do Poder'' é, antes de tudo, mergulhar em um doloroso passado ainda dolorosamente atual... mas a gênese do problema nos ajuda, sobretudo, a combatê-lo. Assim, a obra de Faoro é essencial não só ao acadêmico, mas ao cidadão brasileiro consciente. Leitura, pois, obrigatória, para quem ainda sonha em mudar o Brasil!

sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Jusnaturalismo internacional ataca outra vez


Nessa última semana, o Tribunal Penal Internacional, após mais de 60 anos, condenou um ex-chefe de Estado por violações aos direitos humanos. Esta sentença, diz-se, mais que garantir os direitos humanos como verdadeiros princípios gerais do direito, superiores, assim, aos direitos nacionais, abre uma esperança rumo à sonhada ordem jurídica internacional: desde Grócio até Hans Kelsen, o sonho de um direito internacional, assentado em valores democráticos, embala as experiências de instalação de tribunais internacionais. Talvez Charles Taylor tenha realmente sido um criminoso, golpista, assassino e estuprador, mas o que realmente está por trás de uma decisão como essa? Vamos, pois, à História, essa professora severa e pálida, onde estão as respostas para as dúvidas do presente.

Quando da afirmação e centralização das monarquias europeias, vigorava a forte crença em um direito natural emanado de Deus e exercido pelo príncipe, o lugar-tenente de Cristo na Terra, assentadas em São Tomás de Aquino. Todavia, dois problemas práticos decorriam dessa análise: qual príncipe, dentre os dezenas, é o verdadeiro e legítimo representante de Deus (já que o poder político é dado por Deus- Omnes potestas ad Dei)? E, além disso, qual é o conteúdo desse direito natural válido para todos, em todo tempo e lugar? Essas duas indagações legitimavam guerras perpétuas entre os reis pela soberania geral, já que cada um acreditava ter direito natural ao poder. O problema real é que o regnere, ou jus imperii, a própria soberania, engendrada teoricamente por Jean Bodin, ainda preservava o velho ranço romano, o de que o imperator (aquele que detêm a supremacia militar) exerce o poder de ordenar a sociedade; ordenar este que consiste em regular, ou, numa palavra, criar direito. Assim, associando a doutrina romana da supremacia militar ao teocratismo cristão, chegou-se à conclusão de que o poder de "desvelar'' ou revelar o direito natural, e, a partir deste, criar o direito para toda a civilização ocidental (considerada a "jurisdição'' do detentor do regnere), derivava da vitória militar: o escolhido de Deus para governar é o mais forte, e, por sua coroa decorrer da vontade divina, ele estaria apto a, através dos princípios do direito natural, revelados pela razão (a qual era exercida pela clero...), constituir o direito positivo, destinado a impor aos súditos um comportamento desejável. 

Essa derivação do direito positivo do direito natural, através da razão, não excluía uma fundamentação última em leis divinas (estas, inacessíveis, apenas seriam conhecidas na medida em que associadas às leis naturais, os princípios do direito natural), absolutas, "normas fundamentais'' do sistema. Dessa forma, há uma associação necessária entre o detentor da força militar (imperium) e as leis positivas (ordens do rei), que buscam sua fonte de legitimidade em princípios abstratos e racionais, derivados da vontade divina. A vontade do rei, assim, se fundamenta, em última instância, na vontade de Deus, revelada pela Igreja: se é possível saber o desejo divino através da razão, não é necessário ouvir Deus através do povo (Vox populus, vox Dei). Excluí-se, assim, a população das decisões jurídicas.

A disputa dos reis pela soberania no Ocidente, e, em decorrência, pelo poder de impor o que é ou não o direito, buscava, por fim, estabelecer uma ordem jurídica internacional, com uma fonte de poder e de direito, regulado por princípios jusnaturalistas. O problema, como já dito, é a indeterminação do príncipe, já que nenhum rei conseguia dominar os demais e, em decorrência desse vácuo, não se saberia o jus gentile, o direito internacional que se tornaria o único e verdadeiro direito. O leitor experiente, que acompanha as notícias internacionais, já deve ter associado a disputa pela soberania da Europa moderna com a que ocorre hoje, a qual teve como última manifestação a condenação de Taylor, ex-ditador da Libéria, por crimes contra "direitos fundamentais'' estabelecidos em complexos jurídicos internacionais. E os problemas práticos são os mesmos: quem diz, na atual ordem política mundial, o que é direito internacional, superior, hierarquica, polica e moralmente aos ordenamentos nacionais? Qual é o conteúdo desse direito internacional?

Para isso, temos de voltar à algumas reflexões históricas. Em 1648, pelo tratado de Westfália, os reis finalmente pararam de reclamar a posse de uma soberania erga omnes e única, para reconhecer o poder jurídico de cada rei em determinar o direito nacional. Reconheceu-se a soberania nacional de cada reino, ainda repousante na força militar de uma dinastia escolhida por Deus e guiada pela Igreja. Essa convivência entre soberanias internas distintas continuou até a ascensão de Napoleão, após a Revolução Francesa. Esse evento possui, então, uma característica fundamental em nosso pequeno estudo: aqui, o direito natural, fonte da legitimidade das monarquias, é utilizado contra ela. As novas normas superiores são, dessa vez, determinadas pela vontade popular, exercida, por sua vez, através de institutos básicos e universais, como o direito à liberdade, igualdade e fraternidade. Esses direitos naturais, não acessíveis pela razão, mas jorrantes desta, são apriorísticos e inatos à toda a espécie humana, o que autorizou, filosoficamente, o império francês napoleônico a defender o novo regime liberal e, ademais, expandi-lo à toda a Europa. O Exército imperial, então, legitimava sua ação agressiva como uma efetivação dos direitos inatos do homem, ou seja, existem direitos imanentes ao homem, que superam as fronteiras nacionais, nos mesmos moldes da velha teoria tomista. Mais uma vez, aquele que detêm a força militar impõe o que é direito, mesmo que olvidado na vontade popular. Essa tentativa acobertada de impor uma única soberania foi, todavia, derrotada, faticamente, por seis coalizões seguidas das potências absolutistas contra Napoleão.

O liberalismo e mesmo o jusnaturalismo, assentados em Kant e Rosseau, asseguraram, por sua vez, a vontade popular como legítima depositária da soberania, do poder de fazer as leis de uma sociedade. A vontade geral, em Rosseau, e a vontade da maioria, em Kant e Locke, passam a determinar o direito. Todavia, Kant vai mais longe: o direito, como modalidade de imperativo categórico (ordens emanadas do povo que tem como fim seu cumprimento, não servindo de meio para outra finalidade que não si próprias), é eminentemente formal. São ordens sobre comportamentos racionalmente desejáveis (não mentir, por exemplo), aqueles aos quais os indivíduos desejam que se tornem universais. Como um ser humano, qualquer que seja, não deseja, racionalmente, o que não é desejável (uma lei que permita a mentira ao invés de proíbi-la), todos os homens desejaram ordenar, a si mesmos, os mesmos comportamentos e condutas desejáveis. Essas ordens, dadas pelo povo a ele mesmo, permitiriam concluir que o direito estabelecido pelos povos pode chegar às mesmas normas, ao menos de forma geral, se os indivíduos puderem estabelecê-las autonomamente (vontade da maioria), a partir do que é racionalmente desejável, permitindo sempre a coexistência dos arbítrios individuais (a justiça kantiana); não há um conteúdo estabelecido a priori, mas uma possibilidade de, pela razão, os homens se guiarem, juridicamente, mais ou menos da mesma forma. Isso, claro, se procederem de forma racional... o próprio Kant ensejou que, essa obediência ao direito natural formal, às condutas desejáveis, desembocaria numa situação em que todos os Estados, obedientes a essas normas, soterrariam os conflitos internacionais. Estados estariam autorizados a intervir em outros que não respeitassem uma forma de Estado não-belicosa...

O casamento entre esse suposto direito internacional kantiano com os direitos naturais oriundos de Locke e Rosseau foi inevitável. A democracia, os direitos da liberdade e igualdade se tornaram "racionalmente desejáveis'', e constituíam o conteúdo histórico do direito natural capaz de assegurar a coexistência de arbítrios. Essa combinação fatal legitimou as empreitadas imperialistas, que, muito humanitariamente, diziam libertar africanos e asiáticos da tirania, realizando os direitos naturais e racionalmente desejáveis de liberdade, igualdade e fraternidade, permitindo ainda ao povo "liberto'' determinar-se democraticamente. Desnecessário dizer que essas decisões dos países invadidos deveriam se dar conforme o que é racionalmente desejável. Essa ideologia liberal assentava-se, sobretudo, na unicidade da razão, que, universal, válida para todos (já que até mesmo os mecanismos de apreensão do conhecimento são universais, asseverou Kant), tinha como fim os mesmos direitos para todos os homens. E, claro, um país que possibilitasse a outro desfrutar desses direitos não estaria realizando nada mais que a vontade geral e o direito natural, além de permitir o fim dos conflitos entre os Estados (a" paz perpétua'' tão sonhada por Kant).
Tribunal Penal Internacional

Como todos sabemos, o fim das guerras pela disseminação do direito natural não ocorreu, e, pelo contrário, os piores conflitos militares se deram pela disputa dos mercados consumidores. Todos tentaram, longe de permitir às populações dominadas a auto-determinação democrática com base nos direitos fundamentais inatos ao homem, escravizar, vilipendiar e, por fim, dilatar suas soberanias aos países dominados. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os países vencedores acabaram por adotar uma última sugestão de Kant, criando um órgão jurisdicional internacional para dirimir conflitos. Todavia, a mesma contradição permaneceu: para resolver conflitos entre Estados e dentro de Estados-  como nos casos recentes da Líbia, Guiné-Bissau e Síria-, será necessário apelar inevitavelmente à força militar. No fim, quem estabelecerá as normas suprapositivas autorizantes da intervenção- o direito de fato, "natural e racional''- serão os detentores do poder militar, cuja vontade se fundamenta na de seus cidadãos. A voz de Deus agora se exerce através do povo, como na antiga passagem bíblica, mas, alerte-se, de um ou poucos povos: aqueles situados acima do trópico de câncer. Daí que, questionando o liberalismo, Carl Schimitt tenha lembrado que muitos dos conceitos políticos da modernidade são meras repetições das ideias teológicas de legitimação, apenas travestidas de laicismo. 

Com o Tribunal de Nuremberg e a fundação da ONU- e, posteriormente, do Tribunal Penal Internacional- a alternativa kantiana e, claro, kelseniana (Hans Kelsen defendia ideias semelhantes as de Kant), o mundo continuou a emular as velhas teorias oriundas de Roma e refinadas por Kant. Agora, todavia, após a globalização, o poder soberano pode ser, fato, multiexercido, embora um grupo de países- o G5- tenha se arrogado ao direito de fiscalizar o cumprimento de certos postulados- estabelecidos por eles mesmos- pelos outros países, chegando a intervir nos que não se comprometem com a democracia, direitos humanos etc. Evidentemente, uma verdadeira falácia: o parâmetro para distinguir os países que respeitam ou não o ordenamento internacional (Declarações de direitos, diversas...) é apenas o alinhamento dos países periféricos às diretrizes dos detentores do poder econômico e militar. Caímos na velha concepção romanista, onde o direito natural e internacional é determinado por quem tem a força. Nada mais fático, nada mais positivista.

Enfim, Charles Taylor, condenado por crimes de guerra quando presidiu Guiné-Bissau, ilustra bem esse processo. Enquanto esteve no poder, promoveu todas as chacinas imagináveis, beneficiado pela inércia do restante do mundo, mais preocupado em "intervir'' no Afeganistão e no Iraque, para garantir a segurança (um direito fundamental, diziam) do Ocidente e, sobretudo, libertar tais países de tiranias cerceadoras da democracia. O jus imperii, embora mitigado, concentra-se nas mãos desse grupo seleto de países, que determinam o que é ou não democrático: a Libéria, onde genocídios, estupros em massa escravidão aconteciam diariamente era considerado um "regime democrático'', ao passo em que o Afeganistão, e a Síria atual, não. Esse simples fato comprova a determinação do direito por interesses materiais e, de forma alguma, metafísicos e abstratos, como o quis Kant, que apenas acabam por servir de disfarce às verdadeiras intenções dos detentores do poder econômico. A abstração esconde o que está por trás como um truque de mágica oculta a atividade de um batedor de carteiras...

Só agora, talvez como forma de afirmar essa doce ilusão do direito internacional como direito natural destinado a apagar os conflitos entre as nações, Taylor foi punido, depois de anos longe do poder e das negociações com grandes joalherias ocidentais. Como Slobodan Milosevic, foi condenado quando já não oferecia perigo e quando passou a causar prejuízos às potências dominantes. Depois do teatro ocorrido, findado com as imagens de um Taylor cabisbaixo ao ouvir sua sentença e fogos de artifício sendo lançados mundo à fora, setores da mídia- e mesmo intelectuais- chegaram a acenar com a velha pretensão sobre o direito internacional hierarquicamente superior a cada ordenamento nacional...

Por isso, quando se falar em direitos naturais ou fundamentais, suprapositivos, superiores a qualquer ordenamento jurídico, que autorizam intervenções armadas os países que os respeitam contra os que violam as normas internacionais, não se esqueça: tais normas não possuem conteúdo a priori, sendo determinadas por quem possui o domunium ou imperium, a força militar (coercitiva) que hoje se expressa em termos econômicos. Aquele que pode, ordena, cria o direito supremo, pelo qual legitima sua beligerância e justifica a satisfação de seus interesses mesquinhos a custa dos países mais fracos, seus súditos, que ainda tem de adequar seu direito interno às ordens do G5. Isso inclui dizer: a democracia liberal (se é que é possível), a livre entrada e saída de capitais, a desregulamentação econômica e a "integração econômica'' com os países centrais (a "globalização'') são meios de aferir a "adesão das nações às Declarações de direitos democráticas''. As normas de tais institutos são palavras-ocas, cujo conteúdo é imposto por quem tem a força... dito isto, concluo aqui que, como mera justificativa, os direitos naturais e impostos anti-democraticamente vem cumprindo o mesmo papel que o exercido quando em Roma ou na modernidade dos reis absolutos. Autorizar que os fortes dominem os fracos.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Próximas postagens

Olá, leitores,
Estamos um pouco improdutivos nessas duas semanas (a culpa, assevero, é do sistema educacional positivista que ainda predomina neste país, exigindo avaliações periódicas dos pobres alunos que penam em decorebas inúteis...), mas iremos voltar às atividades durante o fim de semana. Vamos comentar sobre a polêmica votação do Código Florestal, tecer algumas linhas sobre a histórica decisão do STF sobre as cotas sociais e finalmente iniciar nossa análise sobre o sistema econômico no qual estamos inseridos. Preparem-se para mais dicas de filmes cabeça, músicas epifânicas, dicas de livros, e, para quem gostar, "viagens filosóficas'' bem úteis ao jovem pós-moderno. 

Aguardem, aguardem...

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Exemplo de sentença em caso de estupro: a justiça do Brasil imperial, rápida, eficiente e mortal

D. Pedro I havia sido derrubado e o país enfrentava o caos político e a predominância dos interesses regionais, que favoreceu decisões judiciais como essa... pluralismo jurídico no império, bom tema a ser investigado.


O texto que se segue é de uma sentença judicial datada de 1833 e passada na então província de Sergipe. Sua fonte é o Instituto Histórico de Alagoas. Dá para notar o quanto as autoridades imperiais eram sensíveis aos apelos populares: devemos dar graças pela hegemonia dos princípios da legalidade e da humanidade... mas bem que os ministros do STJ deveriam dar uma olhadinha neste tipo de precedente, antes de absolver pedófilos e estupradores...
*

"O adjunto de promotor público, representando contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant'Ana quando a mulher de Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava em uma moita de mato, sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recusasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimonio porque ela gritou alto e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova.


CONSIDERO


QUE o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambar com ella e fazer chumbregâncias, coisas que só marido della competia conxambrar porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana.


QUE o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quiz também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas; QUE Manoel Duda é um sujeito perigoso e que não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens.


CONDENO


O cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher de Xico Bento, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a MACETE. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta villa.


Nomeio carrasco o carcereiro.

Cumpra-se e apregue-se editais nos lugares públicos.

Manoel Fernandes dos Santos

Juiz de Direito da Vila de Porto

Folha de Sergipe, 15 de Outubro de 1833.''

domingo, 15 de abril de 2012

Fatos pitorescos sobre a História da Inglaterra: sexo, anarquia, derrotas e sombras nos bastidores do "Império Britânico''

Henrique VIII e Ana Bolena em The Tudors: sexo, ambição e lama formam a história inglesa

Acho interessante o modo como aprendemos História. Para começar, temos de decorar algumas páginas com nomes e datas, além de acontecimentos cuja compreensão nos é totalmente alienígena, sem conexão com nossa realidade. Nem mesmo as estátuas de pedra e os bustos mal-feitos que enfeitam nossas praças parecem nos indicar que aqueles fatos realmente pesaram sobre nossas vidas...

Por outro lado, acabamos estudando de forma mais aprofundada a História da Europa do que a nossa própria.   Como nossos fatos históricos acham suas causas (ou melhor, relacionam-se...) na História Europeia, somos obrigados a entender o desenrolar da história gringa e "suas consequências'' para o Brasil. Note que, como as ondas quebrando na areia, nunca geramos nada, sempre recebemos de um centro. A Europa parece nos arrastar pelo túnel da história e, mesmo que não queiramos, somos levados pelo "progresso'' dos nossos tutores. Ou seja, somos mais um país sem identidade firmada, cujas principais matrizes ideológicas e econômicas continuam a provir dos centros do capitalismo e da "cultura civilizada''.

Dentre esses centros, e certamente o país que mais influenciou, política  e culturalmente o Brasil, pelo menos até a década de 1930, está o Velho Reino da Inglaterra. Um país nublado, verde, pacífico, ao menos internamente, há mais de 300 anos. Dizem os livros de história inglesa, é claro... hoje, todo bom inglês é aficcionado pelos símbolos nacionais, hinos, pela monarquia e pela história do país que construiu o maior império da história. O patriotismo e saudosismo pelas glórias do passado fazem parte do cotidiano do britânico atual e, infelizmente, consomem muitas páginas dos nossos livros de História. Mas os próprios britânicos muitas vezes ignoram que sua apoteótica história não é lá tão dourada assim... vamos aos fatos mais hilariantes, com vistas à descontração e, em seguida, aos acontecimentos mais tristes da gloriosa história da Inglaterra. 

1- Guerra de todos contra todos (559-1066 d.C.)

Essa época é a mais turbulenta da velha Inglaterra. Pequenos reinos saxões dividiam a minúscula ilha, travando uma guerra perpétua entre si, após lutarem contra os bretões e conquistarem a ilha. Nesse momento, um general remanescente de Roma, Ambrosius Artorianus, comandou a cavalaria dos bretões e venceu os exércitos saxões, garantindo a paz por uns 20 anos. Após sua morte, os invasores germânicos dominaram a ilha inteira; mesmo morto e com o país conquistado, Ambrosius foi lembrado por mais de um milênio - e até hoje- como um grande heroi, e as histórias populares o transformaram em um herói de conto de fadas, o Rei Arthur da mítica Camelot. O feito do grande herói que inspirou a lenda foi apenas atrasar a conquista saxã por alguns anos, fornecendo aos inimigos, antes desunidos a mal-organizados, a justificativa de uma união militar. Os saxões, assim, apreenderam técnicas de guerra romana e venceram os nativos, facilmente. Sem as vitórias fulminantes de Ambrosius e seus cavaleiros, talvez os saxões tivessem sido igualmente expulsos, paulatinamente; a ideia de Arthur de tentar concentrar todas as forças militares visando grandes batalhas decisivas, e não dividir os inimigos e derrota-los um por um (já que os invasores agiam em pequenos exércitos), acabou gerando, após sua morte, o efeito diverso: organizados, os saxões aniquilaram os bretões em grandes batalhas, já que eram mais numerosos. Em suma: o grande herói Arthur, dos contos de cavalaria, acabou arquitetando a derrota da Grã-Bretanha e sua ocupação pelos saxões...

O mito de Arthur permaneceu como um dos pilares da nacionalidade britânica, apesar de seu fracasso. A própria monarquia fundou seu poder, posteriormente, nas lendas do rei cavaleiro. A vitória saxã, contudo, retalhou a ilha em pequenos reinos inimigos entre si, e, dentro desses reinos, grandes senhores, os Earl, lutavam entre si e contra o rei. Saques, pestes, técnicas agrícolas defasadas e o crescimento de exércitos mercenários transformaram a Inglaterra na região mais caótica da Europa. Esse cenário, contudo, foi superado pelo reino de Wessex que, com a liderança de Alfredo, o Grande, derrotou os outros reinos e pode reunir as forças dispersas contra a invasão viking do século VIII: grandes levas de dinamarqueses, ou danos, atacavam as costas da Europa em saques arrasadores. Sem um poder central que lhes resistisse, fizeram uma bela festa na ilha Britânica, destruindo principalmente dos mosteiros cristãos. A Inglaterra inteira mergulhava no paganismo sádico, com direito até mesmo à rituais de sacrifícios humanos e pedofilia generalizada. Ante a esse caos, Alfredo, rei de Wessex, conseguiu reunir tropas e esmagar, seguidamente, os danos e os seus próprios Earl, num nos eventos decisivos da história inglesa: no dia do Witan, a reunião dos Earl (condes) de Wessex com o rei Alfredo, os dinamarqueses invadiram o país, com mais de 6 mil homens, comandados pelo rei pagão Gutan, que, derrotado no último ano, firmara trégua com Wessex, e fazia questão de rasgá-la. E aí vai o segundo escândalo da história inglesa, após as "vitórias'' de Arthur: os próprios nobres, os Earl, apoiaram secretamente a invasão, acordando com Gutan o ganho de mais terras e garantindo as que já possuíam. A primeira nobreza da Inglaterra, literalmente, vendeu o país aos invasores estrangeiros... lembra alguma elite latino-americana, não?

Pois bem: Alfredo derrotou todos, com a ajuda da Igreja e de nobres menores, já que os grande senhores o traíram. Assim, Alfredo foi considerado o fundador do Reino da Inglaterra, herdado de Arthur, e iniciador do império britânico, por ter organizado o reino, construindo estradas, escolas, um exército permanente, moeda única, fomentado o comércio. Foi considerado o oitavo maior britânico da história. Seu neto, Altestan, finalmente expulsou os danos e se tornou o primeiro rei a se proclamar "senhor de todas as Bretanhas''. A alegria da dinastia de Wessex não durou muito: os danos voltaram, sob a liderança de Canuto, mais de 120 anos após a derrota ante Alfredo e conquistaram o trono inglês. O bisneto de Alfredo, Eduardo, o Confessor, canonizado pela Igreja, conseguiu reconquistar o reino com a ajuda nos normandos, dinamarqueses "civilizados'', estabelecidos no norte da França. Só que prometeu dar seu trono em troca, após sua morte, ao duque normando, Guilherme... o sobrinho de Eduardo, Harold, foi proclamado rei e derrotou os noruegueses, que invadiram o norte, mas não venceu as tropas de Guilherme. Este, autorizado pelo Papa e pelo rei francês, conquistou o reino e fundou a primeira dinastia a se proclamar senhora da Inglaterra. Os normandos, porém, implantaram uma espécie de Apharteid na nova possessão: os saxões eram proibidos de se organizarem, casarem com normandos, falar francês, possuir em grandes extensões de terra e até mesmo tinham o dever de "dar passagem'' aos normandos nas estradas e hospedá-los em suas peregrinações e viagens- de graça, é claro; haviam vilas só de saxões, guetos exclusivos para eles nas cidades e divisões separadas no exército, e nem mesmo nos torneios de cavalaria podiam competir contra normandos. Desnecessário dizer que os saxões eram os únicos punidos pelos xerifes e demais autoridades repressoras (xerifes eram autoridades políticas, jurídicas e fiscais, subordinados e nomeados pelo rei, responsáveis pela cobrança de impostos e pelo governo de regiões administrativas; muitos enriqueciam roubando os impostos, participando de chantagens, explorando os pobres ou associando-se a ladrões ou grandes comerciantes). Apesar desse regime segregacionista, Guilherme reorganizou o país, centralizando-o e terminando com a guerra geral e com o caos, que já duravam mais de 500 anos (a exceção do período de Alfredo, claro).

2- Monarquia Rosa-Choque e os ladrões dos pobres

Os sucessores de Guilherme, definitivamente, não estavam à sua altura, com poucas exceções. Após ser assassinado, em 1085 (por saxões, dizem...), o rei foi sucedido pelo filho, Guilherme, o ruivo. Esse indivíduo adorava caçar com seus amigos nas floretas nevoentas e escuras, enquanto os bispos e nobres davam as cartas na política inglesa. Nessas "caçadas'', os "amigos'' do rei adentravam na floresta e o o rei metia-se a procurá-los em um jogo de gato-e-rato... bem, já deu para entender porque Guilherme adorava rapazes musculosos. O governo inconsequente, destrato com a nobreza e altos impostos cobrados, além de uma conduta amoral, levaram ao assassinato do rei. Seus irmãos brigaram pelo trono, e  Henrique I, o mais novo, levou a melhor, com um ardil. O derrotado, Roberto, também homossexual (...), foi para as cruzadas e, quando voltou, Henrique estava instalado no trono, dando as ordens... o único "homem'' entre os irmãos conseguiu reverter as políticas malucas do Ruivo e dar alguma estabilidade ao reino. Depois de matar o irmão Roberto, é claro. Henrique morreu sem deixar herdeiros homens, já que seu filho morreu em um naufrágio. Sua filha, Matilde, não poderia assumir; mas o filho dela, neto do rei, também chamado Henrique, foi indicado para sucedê-lo. Todavia, Estevão, sobrinho do rei, tomou o trono, fazendo Matilde declarar guerra ao usurpador. Seguiram-se 20 anos de luta, em um período chamado de a "anarquia'': sem um poder central para assegurar a paz, senhores, comerciantes, camponeses, bispos e monges pegaram em armas numa luta sanguinolenta em torno da briga pelo trono...

No fim, Henrique venceu e governou a Inglaterra por muitas décadas. Desenvolveu o reino, criou uma moeda única, centralizou o poder, eliminou a criminalidade, fundou instituições políticas e, principalmente, o Common Law, o direito costumeiro e judicial que continua a viger no Reino Unido de hoje. Mas, claro, seu filho e sucessor fez o grande favor de destruir tudo: Ricardo Coração de Leão, que tentou derrubar o pai diversas vezes para assumir o trono. Sanguinário, violento e ambicioso, Ricardo participou da terceira cruzada e, em dez anos de reinado, passou meros 6 meses na Inglaterra, lugar que detestava. Adorava conquistar terras e dinheiro, além da companhia de rapazes musculosos... o grande guerreiro, temido pelos sarracenos e respeitado por Saladino, sofria do mesmo mal que o tio-avô ruivo. Confessou, várias vezes, nas missas em que participava, seu "gosto pervertido'' por homens... e do púlpito das Igrejas, como penitência. Seu governo destruiu as finanças do reino e desorganizou o país, enfraquecendo a monarquia e fazendo proliferar os crimes: todavia, ainda hoje é adorado como um grande herói inglês, sendo o eterno patrono de Robin Hood nas histórias da cavalaria.

Aliás, Robin Hood jamais existiu, sendo inspirado em um criminoso, Robert Hood, líder de um bando de assaltantes que não poupavam nem camponeses pobres e mesmo eram estupradores de damas e freiras. Roubar para os pobres? Não aqui... na verdade, Robert e seus amigos roubavam de quem quer que fosse e revendiam aos grandes comerciantes, que assim não precisavam comprar as mercadorias pelos preços reais. Foi montado todo um esquema de roubos de mercadorias na estradas, comandado por Robert e pelos burgueses de York: se nosso "Robin Hood'' roubava de alguém, era dos comerciantes pobres e padres desprotegidos, para revender aos ricos... sabe o mal rei João, visto como vilão nos contos de Robin? Ele combateu os roubos e o esquema de contrabando... mas foi tão incompetente, militarmente, que jamais venceu uma batalha, perdendo a Normandia para os franceses e, humilhantemente, acabou assinando a Magna Carta, um documento pelo qual ficava impedido de levantar impostos sem autorização dos nobres feudais. Acabou como o vilão da história.

Rodando um pouco a fita, essa situação de pobreza, roubos e contrabandos, além de guerras externas perpétuas, continuou até o século XIV. Eduardo I acabara de morrer, tendo conquistado a Escócia e conseguido reorganizar o reino. Mas sempre existe um filho gay, na história inglesa, para destruir a obra do pai: dessa vez, foi Eduardo II. Considerado bonito, loiro, forte e alto, Eduardo casou-se com Isabel da França, a mulher mais bela da Europa (embora se diga que Margarida de Borgonha fosse ainda mais bela), mas raramente visitava a mulher; só para usar suas jóias ou roubá-las para dá-las aos seus amantes. Estes passaram a governar o reino, nomeando as principais autoridades, comandantes do exército e mesmo membros da Igreja. A Escócia revoltou-se, diante do rei hedonista, e, com a liderança de Robert the Bruce,venceu os ingleses em 1314, dez anos após a morte de Willian Wallace, o verdadeiro herói dessa luta, vivido por Mel Gibson em "Coração Valente''. Após a derrota, a nobreza, diante dos altos impostos e do desinteresse do rei pelo governo, entregue às mãos dos seus favoritos, e com o apoio da traída rainha Isabel, conseguiu enforcar o amante do monarca, o cavaleiro de Gaveston. Alguns nobres, sob o comando de Roger Mortimer, levantaram armas contra o rei e foram derrotados. O país desorganizava-se, com os aliados dos amantes do rei roubando o Tesouro Real, vendendo licenças de comércio e iniciando uma repressão brutal contra os opositores. Enquanto isso, Eduardo divertia-se em tocar as obras do Palácio, admirando aqueles homens suados... uma obra que jamais terminava, pois o rei mudava radicalmente os projetos para permanecer empregando os trabalhadores. Costumava ir às docas do porto de Londres aliciar os marujos, além de beber com vagabundos e bandidos. Seu favorito de então, Hugo Despenser, adorava usar as jóias da rainha e maltratava-a em público, roubando suas roupas, mandando os guardas a prenderem no quarto ou mesmo reduzindo suas refeições a farrapos de comida. Nesse período, os comerciantes enchiam os cofres de dinheiro e a nobreza conspirava dia-a-dia para derrubar o rei.

 No fim, após mais uma derrota na Escócia, a Rainha fugiu com o príncipe herdeiro para a França, onde levantou um exército com a ajuda do irmão, o rei Carlos, de Roberto D´Artois (uma figura... vou postar algo sobre ele em breve, aguardem!) e do conde da Holanda, e invadiu o reino, sob a liderança de Mortimer, agora amante da rainha. Entrando gloriosamente em Londres, perseguiram o rei Eduardo e o prenderam em um Mosteiro, onde este havia se escondido. Como tinham de livrar-se do rei para consolidar o poder, Mortimer e Isabel ordenaram que matassem Eduardo, sem deixar vestígios. Os carrascos, então, lembrando dos vícios do rei, bolaram um modo engenhoso de matá-lo: esquentaram um chifre no fogo em brasa, preso em uma barra de ferro, seguraram o monarca e introduziram o chifre em brasa no reto real. O grito de dor de Eduardo pode ser ouvido por camponeses à quilômetros de distância...

Sucedendo o pai, Eduardo III reorganizou (de novo...) o reino, e iniciou guerras contra a Escócia e, como ficou na nossa mente desde a sétima série, contra a França, na famosa Guerra dos Cem Anos. O rei queria o trono francês e, de quebra, garantir o mercado consumidor da lã inglesa, a região de Flandres, norte da França. Venceu todas as batalhas e conquistou o norte e centro da França. Parecia que iria formar-se um novo império no ocidente, tão poderoso quanto o de Carlos Magno... mas, no caminho, havia um filho. Calma, esse não era da turma rosa-choque... na verdade, era um herói de guerra, grande general e um exemplo de cavaleiro medieval. Como o pai, se chamava Eduardo, apelidado de "príncipe negro'', pela sua armadura negra. Quando as coisas iam as mil maravilhas, a mulher pela qual o rei apaixonara-se, a condessa de Salisbury, ficou viúva; Eduardo III tentou cortejá-la, mas seu próprio filho acabou por casar com ela que, apaixonada, deu a luz ao neto do rei. Furioso, Eduardo expulsou seu filho da corte e o deixou por conta própria na guerra contra a França, passando a lutar contra os escoceses. Só, o príncipe foi obrigado a fazer alianças com Castela e Navarra para manter o comando da França conquistada, que acabaram por destruir as economias da Aquitânia (o sudoeste francês ocupado por Eduardo) e acabou, sem recursos, derrotado e, por fim, morto, doente e pobre. O rei Eduardo, ao saber de sua morte, se arrependeu e entrou em depressão. Sem seu comando, os ingleses foram expulsos da França e a Escócia venceu os ingleses. Um ano depois, o rei morria, deixando a coroa para seu neto, Ricardo, apenas uma criança. E a Inglaterra mergulhara no delicioso caos, por causa de uma mulher... 

3- Surras e mais surras

No fim do século, o primo de Ricardo, Henrique de Lancaster, dá um golpe de Estado e se torna rei da Inglaterra. Seu filho, Henrique V, retoma a guerra dos cem anos e vence os franceses, em Azincourt, numa das maiores batalhas da idade média, conseguindo casar com a filha do rei da França, Carlos V, além de obter um tratado de "rendição'' do sogro, declarando que Henrique assumiria o trono após sua morte. França e Inglaterra seriam um único reino... mas Henrique morreu de hemorróidas, apenas 3 meses antes do rei Carlos. Seu filho, Henrique VI, um bebê de poucos meses, herdou as duas coroas. Crescendo, se revelou um verdadeiro incompetente, destruindo a obra do pai: construiu escolas e Igrejas, quebrando o Tesouro Real; desligou-se da Guerra, deixando-a ao cuidado dos nobres, que sofriam cada vez mais derrotas e deixou o poder nas mãos de sua mulher, Margarida, uma francesa ambiciosa e, dizem, adúltera; no fim, de tão endividado pelas obras de caridade e religiosas, teve de pedir emprestado e, no Natal, sem crédito na praça, ele e a rainha não puderam jantar... enquanto isso, mercadores, nobres e mercenários lucravam vendendo produtos caríssimos à população francesa dominada, fornecendo equipamentos para as tropas ou simplesmente saqueando. Formou-se um mercado subterrâneo de morte, roubos e quadrilhas que envolviam mesmo nobres de alta linhagem. Cada vez mais derrotados, os exércitos de mercenários, acostumados aos grandes saques na França, retornavam ao reino e trabalhavam para que pudesse pagar mais. Enquanto isso, o rei, um devoto da Igreja, rezava terços e mais terços...

Após a última derrota na Guerra dos Cem anos, a nobreza, capitaneada pelo duque de York, primo de Henrique, iniciou uma guerra civil, usando os mercenários recém-chegados da França. Após cinco anos, morto o duque e sucedido pelo filho, Eduardo, os York venceram. Para perderem a coroa, logo mais; para ganharem, um ano depois. Dessa vez, Eduardo de York matou Henrique e todos os seus aliados; inclusive, matou também alguns York, que "conspiravam'' contra ele: seu irmão Jorge de Gloucester foi preso em um barril e atirado no Tâmisa, morrendo afogado. Conseguiu restaurar a ordem, mas, após sua morte, seu irmão, Ricardo, um general glorioso nas guerras contra a Escócia, tomou o trono e matou os dois filhos do irmão, na torre de Londres. Acabou enfrentando uma invasão do último Lancaster, Henrique Tudor, filho do filho da filha da mãe da Henrique VI e sobrinho neto de Henrique V, e sendo derrotado; Tudor casa-se com Isabel de York, filha de Eduardo IV, unindo as duas Rosas da Guerra dos Rosas... Henrique refunda a ordem, reorganiza o Commom Law, emite moeda única, distribui licenças de comércio, investe na marinha e retira direitos dos barões feudais. Ao custo de altos impostos arrancados dolorosamente do povo...

4- Agora, quem manda sou eu

Morto Henrique, seu filho Henrique VIII assumiu o poder. Jovem, bonito e ousado, mandou enforcar os cobradores de impostos do pai e libertar todos os presos da Inglaterra (muito responsável, não?). Fez festas memoráveis e diárias, com muita carna assada, música, torneios de cavalaria e justas onde ele, o rei, era a principal estrela. Viril, era um dos maiores atletas do reino e não podia ver um rabo de saia. Ambicioso, tentou conquistar a França várias vezes, sendo traído pelos aliados na hora H, aos 45 do segundo tempo, que saiam do campo de batalha e deixavam os ingleses serem massacrados... furioso, Henrique descobriu que seria mais útil tentar assegurar o próprio reino que invadir o dos outros. Tentou, assim, ter um herdeiro, e, para isso, casou seis vezes, matando duas de suas esposas, incluindo a famosa Ana Bolena, pela qual chegou a fundar a Igreja Anglicana. Claro que tomar as terras da Igreja Católica era o principal objetivo... mas livrar-se da primeira mulher, uma espanhola quarentona e já infértil, e casar com a sensual Ana Bolena também era interessante. Por isso, 70% dos britânicos de hoje são anglicanos... pior é que sabem da história: a monarquia inglesa de cunho religioso (o rei é chefe da Igreja) e a Igreja anglicana surgiram dos desejos promíscuos, políticos e econômicos de um rei quase sempre embriagado, viciado em jogos e, acima de tudo, capaz do que quer que seja por poder.

Morto Henrique (de novo...), seu filho Eduardo, uma criança de nove anos, ascendeu ao trono. Super-dotado, teria sido um grande governante, se não tivesse morrido de tuberculose e sífilis, transmitida pelo seu pai a sua mãe e passada para ele durante a gravidez, aos 15 anos. Sua irmã, Maria, assumiu o poder e tentou restaurar o catolicismo, matando mais de 300 protestantes e expulsando os nobres anglicanos do país. Casou com o príncipe Felipe, da Espanha, que a deixou quando ela fingiu uma gravidez para "segura-lo''. Morta, a filha de Ana Bolena e Henrique VIII, Elizabeth, se torna rainha e realiza um grande governo, construindo as bases do futuro império britânico. Promoveu a cultura, financiando artistas como Shakespeare, estimulou o comércio naval, a pirataria e a marinha real tornou-se a mais poderosa do mundo.  Realizações da rainha virgem? Na verdade, não... Elizabeth exercia um grande poder simbólico, mas eram seus conselheiros, principalmente Walsighan, que exerciam de fato o poder, comandando o exército, enviando leis ao Parlamento e vendendo licenças de comércio. No fim, a "rainha virgem'' preferia a companhia de seus amantes e suas amigas, em reuniões onde os assuntos principais eram as fofocas da corte...

Sem filhos, sucedeu Elizabeth o primo, James da Escócia, bissexual assumido, que governou com os favoritos. Começou a perseguir os puritanos e católicos, que fugiam para a América, fundando as 13 colônias que viriam a ser os EUA. Entregou monopólios comerciais a certos grupos de mercadores e enfrentou o primeiro "atentado terrorista'' da Europa moderna: o católico Guy Fawkes tentou explodir o Parlamento no dia em que o rei faria um discurso, na conspiração de pólvora. Acabou preso e morto, inspirando a história da HQ e do filme "V de Vingança''. Pior que James foi seu filho, Carlos I. Dissolveu o Parlamento e meteu-se em guerras, endividando o pais e gerando confrontos contra os puritanos e burgueses, que se uniram contra a monarquia na guerra civil inglesa. Derrotado, Carlos foi preso e Oliver Cromwell assumiu o poder, ordenando a decapitação do rei. O caos estando instalado no país, Oliver prendeu burgueses, nobres, condenou à morte alguns radicais e dissolveu o Parlamento (algo não muito liberal, para variar...), protegendo a economia inglesa, guerreando contra a Holanda e investindo na educação básica. Morto, seu filho foi escorraçado do poder e o país mergulhou de novo no caos.

Aproveitando-se dessa oportunidade, o príncipe Carlos, filho do rei decapitado, pegou um "empréstimo'' com seu primo e rei da França, Luis XIV, de um milhão de liras e comprou o apoio do General Monke (isso mesmo...), tomando o trono com as forças do militar. A monarquia volta, com Carlos II à sua testa. O rei, compulsivo sexual, tinha dezenas de amantes, entre as quais se incluíam verdureiras, lavadeiras e prostitutas de rua, uma das quais Carlos fez Condessa... e que adorava humilhá-lo, traí-lo e conspirar contra ele. Não obstante, a Londres de Carlos estava tão desorganizada que, uma belo dia, ardeu no pior incêndio de sua história, onde os casebres miseráveis habitados por quase meio milhão de pessoas se transformaram em cinzas. O rei ainda meteu-se em aventuras militares junto a seu primo, Luís XIV, e se deu mal. No fim, desgastado, Carlos teve de aceitar o Habeas Corpus Act, que preservava o corpo dos súditos contra prisões arbitrárias deflagradas pela monarquia. O monarca, diante de mais essa derrota no Parlamento, fez o que sempre fez: arranjou mais uma amante, custeada pelo Tesouro Real...

5-Estado liberal? Conte-me mais...

Sucedido o compulsivo pelo irmão, James II, a Inglaterra vive seu grande momento político: o Parlamento arquiteta um golpe de Estado e, oferecendo o poder ao príncipe holandês Guilherme de Orange, realiza a Revolução Gloriosa. Os livros afirmam que, a partir desse momento, a Inglaterra mergulhou na estabilidade do liberalismo, que garantiu condições para a eclosão da Revolução industrial. Não há, portanto, mentira maior...

Após o golpe, Guilherme, investido como rei, enfrentou inúmera revoltas. Nobres, comerciantes, o clero católico e anglicano tentaram restaurar a dinastia Stuart dois anos depois da ascensão de Orange. Na batalha de Boyne, Guilherme venceu Jaime II e o expulsou da Irlanda. Mas as conspirações continuaram, com tentativas de assassinato e mini-golpes no Parlamento, onde Torys, partidários dos Stuart, se digladiavam com Whigs, ou liberais, partidários de Guilherme; em 1705, um bispo espanhol, a frente de 5 mil homens, invadiu a Inglaterra e causou estragos na costa leste do país. O país, contudo, passou a ser comandado pelos capitalistas e pelos landlords, grandes latifundiários da gentry, a nobreza rural. O problema é que a velha nobreza e mesmo o povão estavam insatisfeitos. Tanto que bispos da Igreja e nobres de alta linhagem, em 1714, trouxeram, em segredo, para a Inglaterra o príncipe James III, filho de James II.


Quem reinava era Ana, sua irmã, que sucedeu Guilherme e Maria Stuart, e estava a beira da morte; esta havia indicado o príncipe holandês Jorge Luís de Hannover ao trono, um estrangeiro, algo que causava profundo ódio nos ingleses. Assim, organizou-se uma grande conspiração, digna de Hollywood: trouxeram-se soldados, nobres fizeram acordos, comerciantes sonharam com alguns monopólios régios, bispos católicos pensavam em recuperar a Inglaterra ao catolicismo... estando tudo pronto, a rainha morreu e, no mesmo dia, cercou-se o palácio. Já antegozando o poder e distribuindo cargos, os conspiradores perceberam que faltava-lhes algo... o príncipe, que iria ser proclamado rei, restaurando o absolutismo, tinha saído de Londres. Havia ido cortejar uma dama da baixa nobreza... cortejo que custou caro: os Whigs se organizaram, expulsaram os golpistas e proclamaram Jorge rei da Inglaterra. James teve de fugir, junto com seus apoiadores, para a França, onde seu primo, Luís XIV, acabara de morrer.

Mas não acabou. Os escoceses, que faziam parte do "esquema'' montado para possibilitar a ascensão de James ao poder, se rebelaram contra o novo rei- foram massacrados, mas seus feitos foram cantados por Walter Scott séculos mais tarde. Revoltas continuaram, apesar do Estado burguês se fortalecer: o rei, não sabendo falar inglês (!), não participava das reuniões do governo e seus ministros decidiam as pautas do governo sem consultá-lo. Nasceu, assim, o parlamentarismo, com Robert Walpole como "primeiro primeiro-ministro'' da Inglaterra. O filho de Jorge I, Jorge II (quanta criatividade...) também deixou os ministros governarem sem sua participação. Detalhe: odiava o pai, que tentou desterrá-lo várias vezes. Quando reinava, em 1745, mais uma vez os Stuart tentaram voltar ao poder. Aqui chegamos ao clímax da narrativa...

James III estava velho e fraco, e, tendo gastado todas suas economias com esposas, amantes, bebidas e frivolidades, não tinha recursos para tentar recuperar o trono real. Mas seu filho Charles era diferente: forte, carismático, inteligente e ambicioso, tinha aquele papo fácil típico dos espertalhões e políticos populistas. Logo, conseguiu do primo, o Rei francês Luís XV (que papo ele devia ter...), alguns navios e consultores militares, bem como empréstimos de banqueiros franceses; a França estava em guerra coma Inglaterra e os marachéis dos Bourbon bolaram uma grande invasão da ilha inglesa, que terminava com a coroação de Charles como Rei. Mandou cartas aos clãs católicos dos Highlands da Escócia, bispos e nobres de alta linhagem inglesa. Ele estava invadindo a Inglaterra, e precisava de tropas para reaver o trono. Todos seus convidados toparam a empresa. Detalhe: apenas 15 anos mais tarde, a Revolução industrial eclodiria.

Chegando a Escócia, Charles Stuart encontrou os clãs escoceses prontos para a guerra, junto com alguns nobres e militares. Rapidamente, iniciou um levante em massa no norte escocês e derrotou as forças do Parlamento local. Conquistou toda a Escócia e avançou para a Inglaterra, almejando alcançar Londres: tomava cidade atrás de cidade, para o desespero do Rei Jorge e do Parlamento, cujos membros começaram a fugir, diante da chance de vitória de Charles; diante do avanço das forças de Londres, os revoltosos recuaram para a Escócia. As massas populares apenas acompanhavam o desenrolar das coisas e esperavam o fim do jogo, que veio rápido: as tropas da Inglaterra venceram Charles e este, com ajuda de sua amante, conseguiu fugir para a França, e, de lá, não conseguindo pagar os empréstimo, fugiu para Veneza, onde, sempre alcoolizado, passou o resto da vida. Os escoceses foram deportados para a América, e ainda hoje brindam àquele memorável príncipe que, 100 depois da Revolução inglesa, quase restaurou o absolutismo. 

A dinastia Hannover, então, entregou o poder às mãos do Parlamento. Mas nem todos os reis aceitaram essa posição: Jorge III resolveu que não seria "uma figura simbólica''. Demitiu ministros do Parlamento, emitiu projetos de lei e comprou, literalmente, o apoio de parlamentares. Distribuiu cargos, fechou contratos com grandes companhias de comércio e comandou a maior guerra da história até então, a dos Sete anos, contra a França, e venceu. O poder voltava às mãos da realeza, para desespero dos liberais, e a Coroa concentrava os três poderes. Todos os primeiros-ministros do reinado de Jorge foram indicados por ele, pelo menos enquanto esteve lúcido, sendo o mais importante William Pitt. Tudo, inclusive assassinatos, compras de votos, subornos e distribuição de cargos públicos, era válido, segundo o rei e seus apoiantes, para lograr êxito em seus objetivos. Contudo, a guerra arrasou de tal modo as finanças do reino que Jorge III foi obrigado a aumentar os tributos dos colonos americanos e intervir em seu lucrativo livre-comércio; ou seja, a Inglaterra nada tinha de liberal e tentou esmagar o liberalismo nascente americano. Os puritanos não aceitaram e, vinte anos depois, derrotaram os ingleses, com a ajuda da França e da Espanha, conseguindo sua independência. Jorge, nessas épocas, havia enlouquecido: adquirira porfiria, um acúmulo de mercúrio no corpo que causa diversos sintomas, inclusive demência. Conversava com animais e árvores, uma das quais dizia ser "meu amigo, o rei da Prússia''. Quando tinha calor, retirava suas roupas onde quer que estivesse, durante a Missa, cerimônias de Estado ou mesmo diante do Parlamento (!). Striptease no Parlamento, já pensou?

Jorge se recuperou e comandou o país nas guerras contra Napoleão, até enlouquecer de vez. Seu filho, Jorge IV, um libertino, transformou a Corte no lugar mais imoral da Inglaterra. Odiava a esposa, com quem teria se deitado apenas três vezes, preferindo sua amante. Foi em seu reinado que o embaixador de uma pobre e falida nação se dirigiu ao rei e pediu o reconhecimento da independência de seu país- e alguns empréstimos. Essa país era o Brasil, que tomou 2 milhões de libras dos banqueiros ingleses e os pagou a Portugal pela independência. Não é preciso comentar mais...

5-Conclusões

Morto Jorge, o irmão, Guilherme, assume o poder. Nessa época, os reis nada mandavam mais. Vitória sucede o tio e reina por mais de 63 anos, sem governar; consolida assim a monarquia como símbolo nacional. É ela quem patrocinaria escritores, poetas e historiadores para "esquecer'' as mazelas do passado e construir uma história "bonita'', cheia de heróis e feitos de glória, com cada episódio brilhante conduzindo ao momento em que viviam: o poderoso império britânico, construído, de fato, pelos homens aqui retratados. É Vitória quem realiza, talvez, o maior dos disparates contra a memória histórica do país: reinventar a História, escondendo os fatos, embelezando-os,ou pura e simplesmente, mentindo. Esqueceu-se que a Inglaterra foi, durante boa parte do tempo, uma ilha miserável explorada por uma casta ociosa, onde a anarquia sucedia-se frequentemente e pobres camponeses lavravam a terra seca, comandados por reis que quebravam o país em nome de seus caprichos e nobres totalmente amorais, como nos casos de Guilherme II, Ricardo "Leoa'' e Eduardo II, enquanto que, na história vitoriana, apareciam como exemplos de conduta. Arthur, Alfredo, Henrique II, Eduardo IV, Jorge III e Charles Stuart construíram os pilares em torno dos quais formou-se a moderna Inglaterra. Mas não deveriam ser louvados por essa herança, porque a obra "de arte'' desses homens se deu por interesses econômicos, morais ou mesmo para a satisfação de desejos sexuais (lembrem de Henrique VIII e Charles II...).

Não almejaram, contudo, criar qualquer império poderoso, mas pretendiam satisfazer seus próprios desejos; cada decisão que tomaram foi como um edifício de bases tortas e mal-construído, que recebeu um acabamento de primeira linha pelos vitorianos. Ou seja, do caos desses governos nasceu a atual Inglaterra. Mas seus fundamentos são podres, velhos; não só interesses econômicos, mas sobretudo pessoais, levaram a Inglaterra a ser o que foi, construindo o maior império da história. Hoje, os nomes de seus heróis enfeitam ruas, praças, seus bustos e estátuas imponentes trazem lágrimas aos olhos dos patriotas ingleses... deviam chorar, de fato, mas de vergonha. Sem comentar-se que a Inglaterra passou mais de 1500 anos em pleno caos, com obras políticas sendo feitas e desfeitas, cujos governantes nada mais queriam do que garantir a própria subsistência. A desorganização, o latifúndio e a exploração política, além do autoritarismo, são marcas da história do Brasil, mas, enfim, o Reino Unido, nessas matérias, foi ainda pior que nosso país.

Foi esse país que, como potência imperialista, "autorizou'' a independência do Brasil e dominou a economia nacional por mais de 100 anos. Foi essa nação de "heróis'', guerreiros, banqueiros e personagens de contos de fadas que comandou a morte de mais de 130 milhões de pessoas, em seu império colonial secular; foram estes mortos que construíram a glória britânica e sua riqueza, não heróis inventados, que, na verdade, apenas prejudicaram, quando muito não atrapalharam, o desenrolar dos acontecimentos sociais que conduziram à formação da moderna Inglaterra. Muito cuidado com o nacionalismo inglês: falso, mortal, perigoso. Faz mal a saúde, e continua fazendo.